Além do Cidadão Kane

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

A guerra invisível

Kamil Mahdi


Fonte: ODiario.info
Tradução de José Paulo Gascão

Os Estados Unidos continuam a pintar um panorama cor-de-rosa sobre o progresso no Iraque, mas a realidade é a de pobreza extrema, de violência, de tortura e de corrupção política num país que ainda sofre as sanções, a invasão e o saque imperial e contínuo dos seus recursos.

Continuam a recorrer à guerra e às sanções para manipular e controlar o Iraque. O recente livro de Joy Gordon sobre as sanções e a política estadunidense, mostra que estas não foram utilizadas pelos Estados Unidos e pela Grã-Bretanha não como alternativa à guerra, como acreditaram muitos dentro da comunidade internacional, mas como o meio de debilitar o Iraque na preparação da guerra.

Por isso não foram feitas apenas uma vez, mas duas, em 1991 e em 2003. Esta guerra invisível, para usar os termos de Joy Gordon, faz parte de uma guerra dos Estados Unidos contra o Iraque que dura há vinte anos e que os sucessivos governos britânicos apoiaram desenvergonhadamente com entusiasmo.

Cada dia que passa, vemos e conhecemos novas provas do seu custo humano, apesar dos governos ocidentais tratarem de descartar a sua responsabilidade nos danos acumulados por uma guerra mantida ao longo de toda uma geração e que se persiste em manter.

Inclusive, atualmente sete anos depois da invasão e da ocupação, a guerra invisível ainda não acabou. Devido ás resoluções do conselho de Segurança da ONU, o Iraque continua a ser considerado pelas grandes potências como uma ameaça à paz internacional, sofrendo por isso as sanções e medidas aplicáveis no âmbito do Capítulo VII da Carta das Nações Unidas.

A guerra do Iraque continua, não só através da presença e das atividades das forças de ocupação estadunidenses e dos mercenários estrangeiros, mas também através de uma série de medidas punitivas aplicadas contra o Iraque com o fim de garantir o seu cumprimento como e tal os Estados Unidos desejam.

Como residual das sanções impostas em 1990, as receitas de petróleo do Iraque ainda são depositadas num fundo dos Estados Unidos supervisionado externamente e sujeito a restrições que atribuem aos Estados Unidos um grande poder decisório. Todas as reservas estrangeiras do Iraque são retidas pelos Estados Unidos e foram expressamente ameaçadas com ações legais em tribunais norte-americanos. Os Estados Unidos utilizaram o seu poder para obterem cedências nas negociações do governo iraquiano sobre o Acordo Estratégico em 2008. Em Setembro deste ano o governo de Al-Maliki concordou em pagar 400 milhões de dólares por algumas estranhas ações judiciais interpostas nos Estados Unidos contra o Iraque por cidadãos norte-americanos; reclamações que o governo estadunidense e o sistema judicial pode decidir, recorrendo aos ativos financeiros iraquianos. Esta finta ao Direito e às relações internacionais civilizadas lembra o saque dos ativos iraquianos no primeiro ano da ocupação e demonstra que as afirmações de que o Iraque recuperou a sua soberania são vazias de conteúdo.

No entretanto, as sanções continuam a ser utilizadas para coagir e prejudicar o Iraque.

O Iraque é hoje a parte prejudicada, tal como o vem sendo há 19 anos. No entanto, é o Iraque quem está a pagar ao Kuwait e a outros países as indenizações impostas pelo regime de compensação estabelecido pelas Nações Unidas em 1991. As reclamações ao abrigo do dito regime foram de montantes muito elevados e muitas vezes exageradas, em sentenças que se impuseram de forma injusta. Independentemente do grau e das provas dos abusos dos Estados Unidos e da Grã-Bretanha no Iraque nem o enorme sofrimento do povo iraquiano, os ricos e poderosos continuam a exigir a sua «compensação» a uma nação que ficou traumatizada pelos abusos das grandes potências. O Iraque deverá continuar a pagar as indenizações durante as próximas décadas, a menos que venha um governo que tenha a coragem de pôr termo a tal iniqüidade.

Enquanto os Estados Unidos impõem este castigo, o FMI, com a sua habitual imprudência criminosa, tem estado a abolir o sistema iraquiano da caderneta de alimentos que é essencial ao sustento diário de uma imensa percentagem da população iraquiana. Na província de Diyala, onde o sistema não tem funcionado eficazmente devido ao conflito, uma recente sondagem oficial demonstrou que 51% da população sofre de «carência de alimentos», isto é, o seu consumo de energia alimentar é inferior às necessidades energéticas mínimas. Em Basora, donde as forças britânicas se retiraram no ano passado, deixaram atrás de si 20% da população privada de alimentos, ainda que funcionando em regime de racionamento.

Quase 30% da população do conjunto do país não tem possibilidades de encontrar qualquer emprego, apesar de se terem alargado massivamente os postos de trabalho estatais e de segurança. Isto, sem contar os milhões de pessoas que se refugiaram em países vizinhos, nem com as mulheres que desistiram de procurar emprego. A inflação está outra vez a aumentar vertiginosamente, os serviços públicos, a eletricidade, as provisões de água potável, e a habitação continuam em grave crise. A economia continua em ponto morto e, no entanto, o Iraque vê-se obrigado a pagar indenizações injustas (e impostas) pelos que dizem tê-lo libertado.

As sanções obrigaram o governo a aceitar alterações fronteiriças que foram desenhadas para submeter o principal canal marítimo iraquiano à soberania do Kuwait, deixando o Iraque quase sem saída para o mar. Nas alterações das fronteiras impostas pelas Nações Unidas, o Iraque perdeu áreas que nunca foram reivindicadas pelo Kuwait. É esta a política defendida pelos governos dos Estados Unidos e da Grã-Bretanha, uma política que cria, efetivamente, uma ameaça á segurança.

Apesar da retirada terrestre britânica do ano passado, há unidades da Marinha britânica dentro e nas proximidades do Iraque, aparentemente para proteger os principais terminais de exportação de petróleo do Iraque e as suas rotas de acesso marítimo. É uma proteção com uma faca apontada à garganta.

Naturalmente que existem perigos de segurança contra instalações vitais do Iraque, as um dos principais provém da agressiva atitude britânica e estadunidense contra o Irão e da sua contínua desestabilização na região. O que é preciso é um acordo de segurança regional que contemple a saída total das forças estrangeiras.

Os antecedentes britânicos no Iraque são abomináveis. Sabemos das torturas e assassínios cometidos pelas tropas que o Ministério da Defesa tratou de encobrir, como sabemos da sua incapacidade para proporcionar segurança em Basora e no sul do país. No entanto, o Ministério da Defesa britânico diz que «as Forças Armadas britânicas tem estado a ajudar os iraquianos para assegurar e reconstruir o seu país depois de anos de negligência e conflito».

A falsidade da reclamação dos que impuseram previamente o bloqueio contra o Iraque é igualmente desmentida no terreno. Há poucas semanas a amara da cidade de Basora informou que os diques junto à fronteira com o Irão estão em perigo de desmoronamento. O seu desmoronamento poderá provocar que uma área de terreno pejada de minas deslizará para dentro da cidade. Este é um dos exemplos de segurança e de reconstrução que as forças britânicas deixaram atrás de si. Que segurança e que reconstrução, pergunto-me, se o exército não faz frente aos perigos de minas terrestres a movimentarem-se sigilosamente numa cidade debaixo do seu controlo?

O Departamento para o Desenvolvimento Internacional (DFID, na sua sigla em inglês), por sua vez, assegura que em 2009 concedeu 14 milhões de libras de ajuda ao Iraque e quase 19 milhões no ano anterior. Naturalmente que estas quantias são uma miséria em comparação com as dezenas de milhares de milhões gastos pela Grã-Bretanha na guerra. No entanto , uma olhar rápido sobre a denominada ajuda da Grã-bretanha ao Iraque demonstra que dos 32,8 milhões de libras desembolsadas entre 2008 e 2009, só 5% (quase um milhão e meio de libras) foi gasto em saneamento de águas e outras questões sociais, enquanto um terço foi investido foi investido em «governação», e cerca de metade numa categoria camada «outros», que parece incluir as contribuições para os esforços de ajuda humanitária. Quase nada foi gasto em projetos de desenvolvimento econômico ou na reconstrução real das infra-estruturas físicas.

Segundo o ministro iraquiano dos Recursos hídricos, no ano passado (2009), só no sul do Iraque houve trezentos mil iraquianos que se converteram em refugiados ecológicos porque se viram forçados a mudarem-se pela má qualidade da água disponível aos seus povos, também devido á deteriorização à seca. Hoje, em Bassorá, e ainda mais em Faluya, está a verificar-se um sério, mesmo um catastrófico, aumento do número de cancros e doenças congênitas.

O principal propósito do programa de ajuda do DFID não é aceitar a responsabilidade da Grã-Bretanha nos danos causados pela guerra ilegal, mas criar um clima de influência política e promover a inversão estrangeira. Talvez por isso o governo [britânico] de coligação de não vai diminuir o programa de ajuda.

Continuamos a ouvir que o Iraque e rico em petróleo, mas esse petróleo foi obscuramente arrematado por uma cleptocracia e um governo incompetente, assessorado por um exército de consultores internacionais. As empresas multinacionais foram brindadas com contratos por vinte anos que as recompensam sem quaisquer riscos, ao mesmo tempo que controlam a maior parte do petróleo do Iraque, campo a campo.

Muitas pessoas no Iraque já estão a falar da luta que aí vem pela nacionalização do petróleo. Não é estranho que nem todos os contratos tenham ido parar ás grandes companhias petrolíferas estadunidenses e britânicas. Se assim tivesse sido, as linhas da batalha seriam mais claramente definidas e a derrogação dos contratos mais fácil, mas essa é uma luta que, de qualquer modo, vai chegar.

Os restantes ativos industriais do Iraque também estão a ser arrematados e os investidores cobiçam com ansiedade parcelas primordiais do Estado. Os recursos de água do país estão a ser desviados por Estado vizinhos, e a pretexto do federalismo e da descentralização o país começa uma vez mais a afundar-se na dívida, que ameaça sair de controlo. É assim que as prometidas novas receitas do petróleo se estão de antemão a desbaratar.

Os ocupantes chegaram, destruíram, maltrataram e criaram o caos, Fomentaram a corrupção e agora, alto e bom som, dão conselhos sobre a política econômica, a distribuição eqüitativa de recursos, e um bom governo. Os ocupantes estadunidenses mantêm ainda cinqüenta mil soldados e dezenas de milhares de mercenários no país e retêm a linha de salvamento e as contas bancárias do Iraque. As atrocidades terroristas sucedem-se diariamente e o povo do Iraque é a vítima de uma derrota que os Estados Unidos recusam reconhecer. Um fracassado processo político tem o Iraque refém de esquemas corruptos e protegidos pelos Estados Unidos, de forças obscuras e regimes reacionários que fomentam o sectarismo e os prejuízos no Iraque e em toda a região.

Os Estados Unidos continuam a pintar um panorama de progresso cor-de-rosa que em larga medida é medido pela deriva do seu projeto para o controlo empresarial do país. A corrupção generalizada e as condições caóticas supõem que um tal projeto não se possa ainda confiar aos aliados políticos locais dos Estados Unidos, como também não acredito que a retirada militar completa que os Estados Unidos prometeram para Dezembro de 2011 se vá cumprir.

Para concluir, uma referência às recentes revelações de Wikileaks sobre os abusos das forças estadunidenses e das forças de segurança iraquianas. Revelou-se muita informação sobre matanças, torturas e sobre a incapacidade de dar proteção aos civis. As divulgações devem ser utilizadas para expor a política de ocupação e os crimes contra o povo iraquiano e para identificar as vítimas e os perpetradores.

No entanto seja lá o que for que se possa dizer e fazer, não se deve esquecer que o ponto-chave deve continuar a ser a saída de todas as forças dos Estados Unidos e de todos os mercenários do Iraque. Não poderão ser as forças estadunidenses responsáveis por terem cometido os abusos quem vai reformar as forças de segurança iraquianas, nem tampouco os mercenários.


Nota: Este artigo foi escrito com base na intervenção do autor na Conferência Stop the War Coalition.

* Professor de Economia do Médio Oriente na Universidade de Exeter.

Este texto foi publicado em www.counterfire.org/ através de Uruknet

Publicadoo em Tribunal Iraque
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