Além do Cidadão Kane

sexta-feira, 31 de outubro de 2008

Vamos tapar o sol com a peneira?

Soraya Fleischer e Kauara Rodrigues

O dia 28 de maio foi a data escolhida para lembrar a realidade nefasta da mortalidade materna e lutar para que esses índices caiam. Mortalidade materna, conceito aprimorado por vários governos, pesquisadores e organismos internacionais, é definida como sendo o óbito de uma mulher durante a gestação ou dentro de um período de 42 dias após a gestação, independentemente da duração ou da localização da gravidez, devido a qualquer causa relacionada ou agravada pela condição gestacional ou ainda por medidas relativas a essa, porém não devida a causas acidentais ou incidentais.
O Brasil, infelizmente, ainda está entre os países com persistentes índices de mortalidade materna. A cada 100 mil bebês nascidos vivos, quase 80 brasileiras falecem, segundo o Ministério da Saúde; isto é, num cálculo rápido, se nascem cerca de 3,240 milhões bebês por ano no Brasil, morrem cerca de 2.592 mulheres em razão da gravidez ou do parto — número ainda subestimado dada a subnotificação. É um nível alto demais, sobretudo se já há suficiente acúmulo científico para prever e impedir mortes de natureza obstétrica. Não se pode tolerar que mais mulheres pereçam de mortes evitáveis.
Além de transtornos hipertensivos e hemorrágicos, uma das causas mais significativas dessas mortes são as conseqüências de abortos inseguros: sem higiene, atendimento profissional adequado ou cuidados profiláticos posteriores. No Brasil, complicações decorridas desses procedimentos são a terceira maior responsável pelas mortes maternas.
A data ganha sentido atual com um caso recentemente noticiado pela imprensa. Quase 10 mil mulheres de Mato Grosso do Sul poderiam ser processadas porque fizeram abortos numa clínica de planejamento familiar, entre 1999 e 2000. A prática é tida como crime (exceto no caso de gravidez resultante de estupro e risco de vida materna) desde o Código Penal de 1940. Dessas, quase 3 mil correm o risco de serem indiciadas de fato. Ao que parece, o juiz corre com os processos para evitar que os casos prescrevam. A pressa e envergadura do caso cheiram a uma “limpeza moral” às custas das mulheres — um exemplo típico de violência de gênero.
Cientes do viés criminoso do ato, as mulheres só nele incorreram porque carregavam justificativas pessoais e legítimas. Não se vêem como criminosas. Diante de gestações inviáveis, arriscadas, ilegítimas, indesejadas, procuraram, como última alternativa, uma clínica que discretamente oferecia o serviço.
Se não tivessem recorrido ao serviço, é provável que muitas tivessem optado por técnicas menos seguras e engrossado as estatísticas nacionais de mortalidade materna. Não é nosso intuito aqui defender a clínica, mesmo porque, oferecendo serviço ilegal, tampouco há garantia de que seguisse os protocolos obstétricos e sanitários. Mesmo atendidas, podem ter resultado muitas seqüelas pós-abortos. E o próprio estado do Mato Grosso do Sul não oferece serviços de atendimento ao aborto legal, previstos em lei. Ainda assim, essas mulheres avaliaram que o risco das seqüelas seria menor na clínica do que diante das alternativas caseiras e amadoras. A própria vida pesou mais do que a ilegalidade do ato abortivo. As seqüelas e a morte são a faceta derradeira das práticas clandestinas. Antes, há solidão, silêncio, intromissão do marido e da família, imperícia técnica, impunidade profissional.
Esse caso mostra que proibir o aborto não evita sua realização nem tampouco previne as mortes maternas. Só tapa o sol com a peneira e talvez aplaque dilemas morais vividos por parcela da população, inclusive dos parlamentares que supostamente nos representam no Congresso Nacional. Logo depois que o caso de Mato Grosso do Sul explodiu, um grupo de 33 deputados — majoritariamente homens — ignorou a complexidade desse indiciamento em massa e decidiu votar contra o Projeto de Lei 1.135, que descriminaliza a prática do aborto.
O grupo de parlamentares fechou os olhos para a realidade dramática que as 10 mil sul-mato-grossenses vivem, bem como tantas outras brasileiras. A decisão ignorou os dados de pesquisa, as orientações do Ministério da Saúde e as mais progressistas resoluções tomadas em outros países. Rejeitar o mérito do Projeto de Lei 1.135 na Comissão de Seguridade Social e Família foi um passo anacrônico que, de forma simplória e irresponsável, fecha os olhos para o que acontece diariamente no país.
Manter a ilegalidade do aborto é chancelar toda a rede clandestina de atendentes, medicamentos e procedimentos que o viabilizam. Manter tamanho tabu é restringir as opções das mulheres e dos casais que não desejam levar uma gravidez até o fim. Manter esse crime é condenar as mulheres a pagarem com suas vidas e a justificarem a existência teimosa do dia 28 de maio.


Soraya Fleischer - Antropóloga e assessora técnica do Centro Feminista de Estudos e Assessoria

Kauara Rodrigues - Cientista política e assessora técnica do Centro Feminista de Estudos e Assessoria

Original em CFEMEA

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