Além do Cidadão Kane

sexta-feira, 29 de agosto de 2008

O que está em jogo no caso Raposa Serra do Sol

Vivemos um momento histórico no Brasil, disse a advogada índia Jôenia Batista de Carvalho, que defende no Supremo Tribunal Federal a demarcação contínua da reserva indígena de Raposa Serra do Sol, no julgamento da ação iniciada pelo governo de Roraima e por um grupo de fazendeiros que querem anular ou modificar a demarcação feita em 1998 e homologada pelo presidente Lula em 2005. Joênia tem razão: a decisão que sair do julgamento iniciado na quarta feira terá forte impacto em decisões judiciais envolvendo terras indígenas em todo o país.
A questão envolve forte controvérsia - que, muitas vezes se traduziu em confronto aberto e direto - entre comunidades indígenas, fazendeiros, e outros setores da sociedade, com destaque para os militares e sua justa preocupação com a segurança e a soberania de nosso país.
A controvérsia é antiga. Ela remonta aos tempos coloniais quando comunidades indígenas muitas vezes invocavam a proteção Del Rei para garantir suas terras. Mas, quase sempre, o ''julgamento'' era decidido pela força das armas, com a escravização ou extermínio puro e simples das populações originárias.
Demorou muito tempo para que o direito indígena às suas terras fosse reconhecido pela lei, e mais tempo ainda para que a lei fosse efetivamente aplicada. Levar o julgamento para o STF é, deste ponto de vista, um progresso histórico e democrático que deve ser saudado como um enorme aperfeiçoamento da civilização brasileira.
Há três pontos que merecem destaque nesta questão; eles se referem à defesa da Constituição, ao destino dos moradores não índios da área, e à soberania nacional.
A Constituição de 1988 não deixa dúvida a respeito dos direitos dos índios. Suas determinações foram acatadas e explicadas cabalmente no voto do relator do processo, ministro Carlos Ayres de Britto que, num voto memorável, refirmou os direitos por ela reconhecidos e rejeitou a ação movida pelos fazendeiros que ocupam parte daquela área.
No artigo 20, A Constituição declara as terras indígenas como bens da União e reconhece o direito dos índios a elas; no artigo 231, reconhece o direito dos índios à sua ''organização social, costumes, línguas, crenças e tradições'', e reafirma seus direitos sobre suas terras, delegando à União a tarefa de ''demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens''. Define como terras indígenas ''aquelas tradicionalmente ocupadas pelos índios, as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições'', destinando a eles ''sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes'', sendo ''inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis''. Proibe também a remoção dos grupos indígenas, salvo ''em caso de catástrofe ou epidemia que ponha em risco sua população''. Este mesmo artigo da Constituição garante a defesa nacional contra qualquer ameaça estrangeira ao arrolar entre os motivos de remoção o ''interesse da soberania do País''.
Finalmente, declara ''nulos e extintos'' todos os ''atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse'' de terras indígenas, ressalvando casos de ''relevante interesse público da União'', e veta o direito a ''a indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa-fé''.
É a legitimidade dos preceitos constitucionais sobre a questão que está em jogo no julgmento, pelo STF. O ministro Ayres de Britto não acatou a pretensão dos fazendeiros de mudar a demarcação da área indígena contínua feita pelo governo federal e criar ''ilhas'' dentro da reserva, que teria assim sua continuidade quebrada, com a apropriação por fazendeiros de terras indígenas cuja posse a Constituição declara ''inalienáveis e indisponíveis'', e os direitos dos índios sobre elas ''imprescrítíveis''.
O segunto ponto diz respeito à necessária indenização, na forma da lei, da população não índia residente na área antes da demarcação. Qualquer negociação com estes moradores deve ser feita respeitando a Constituição, e levando em conta a ação daqueles que, como exige a lei, tenham agido de boa fé. O governo já depositou em juízo valores referentes a esta indenização, e quase todos agricultores que lá residiam entraram em acordo e sairam da área. Resta um pequeno grupo liderado pelo prefeito da cidade de Pacaraima, Paulo Cesar Quartiero (DEM). Ele é um grande plantador de arroz que já foi preso, em maio, por insuflar a resistência contra a demarcação, e multado em mais de 300 milhões de reais por danos ambientais causados na reserva.
Finalmente, há a questão da soberania nacional. A Constituição prevê medidas para defendê-la. Ao definir as terras indígenas como propriedade da União, integrou-as ao patrimônio nacional, como partes do território brasileiro habitadas por povos indígenas, cuja guarda e defesa cabe ao Estado nacional, sendo as Forças Armadas o instrumento para isso. Não há portanto impecilho constitucional para a presença do Estado e das Forças Armadas dentro delas, para o pleno exercício da soberania nacional e defesa das próprias populações indígenas. Como disse o ministro Carlos Ayres de Britto em seu voto, as terras indígenas fazem parte do poder estatal brasileiro e submetem-se às regras da soberania nacional, definidas pela Constituição.
A importância do julgamento em curso no STF decorre da definição de regras para enfrentar estes três problemas. A primeira batalha preservou a Constituição e garantiu os direitos indígenas. Mas o resultado ainda não é final: um dos ministros do STF, Carlos Alberto Direito, não se sentiu suficientemente esclarecido e pediu vistas, protelando a decisão para um prazo ainda não definido. Até lá, a luta continua!
Original em vermelho
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quinta-feira, 14 de agosto de 2008

2.500 menores presos pelos Estados Unidos no Iraque

João Bernardo

Fonte: Jornal Mudar de Vida

Em Fevereiro (http://www.tribunaliraque.info/) chamei a atenção para o caso de um detido de Guantânamo, Omar Khadr, aprisionado pelos norte-americanos no Afeganistão quando tinha 15 anos de idade. Podemos agora ver que se trata de uma prática generalizada. Segundo um relatório enviado na semana passada pelo governo dos Estados Unidos ao Comité da ONU para os Direitos das Crianças, desde 2002 já foram presos pelas forças armadas norte-americanas no Iraque 2.500 menores de 18 anos, em alguns casos por períodos superiores a um ano. Este relatório informa que atualmente as forças dos Estados Unidos têm detidos no Iraque cerca de 500 menores, enquanto cerca de uma dezena está numa base no Afeganistão. Todos estes jovens foram acusados de participar em atividades de resistência à ocupação do seu país, incluindo ações de busca de informação. É curioso considerar que foi precisamente esta a origem dos "escutadores", organizados por um oficial britânico durante a guerra contra os Boers na África do Sul (no final do século XIX e começo do séculoXX) para escutarem o que se passava nas fileiras inimigas. Mas é sabido que os pesos e as medidas variam consoante o lado que os usa. Talvez como desculpa, o relatório oficial norte-americano argumenta que «a idade exata destes indivíduos é incerta, porque a maior parte não sabe a data do seu nascimento ou mesmo o ano em que nasceram». Entretanto, a diretora executiva da ONG International Justice Network declarou-se indignada pelo fato de os jovens estarem detidos em prisões de adultos, como se a inauguração de prisões especiais para jovens insurrectos pusesse tudo no devido lugar.
Notícia original aqui.


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sábado, 9 de agosto de 2008

Exigências democráticas

O povo brasileiro e as forças políticas progressistas, desde o fim da ditadura militar em 1985, num trabalho progressivo lutam para construir e ampliar a democracia no Brasil. A Constituição de 88 e o conjunto de realizações do governo do presidente Lula representam marcos destacados deste processo. Todavia, importantes exigências dos valores e dos princípios democráticos não se realizaram mesmo já passados 23 anos da redemocratização.

Entre estas exigências encontra-se a punição de agentes do Estado que praticaram torturas e outras violações dos direitos humanos durante o regime militar. Questão que foi defendida no último dia 31 de julho, por ministros do governo Lula, Tarso Genro (Justiça) e Paulo Vanucchi (Direitos Humanos), em audiência pública da Comissão de Anistia. A tortura, o assassinato de prisioneiros, e até o macabro ato de ocultação e decapitação de cadáveres foram crimes cometidos durante o regime ditatorial imposto pelo golpe de 64. Inúmeros testemunhos, pesquisas e publicações atestam estes bárbaros acontecimentos, inclusive, o importante livro-relatório, ''Direito à Memória e à Verdade'', editado pela Secretária Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República e que contém o trabalho de mais de uma década da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos.

A punição dos responsáveis por essas atrocidades é um anseio da consciência democrática do país e uma das tarefas inconclusas do processo de redemocratização. A tortura e outros crimes acima nomeados são práticas afrontosas aos mais elementares preceitos da civilização. São condenáveis mesmo pelos tratados internacionais que estabelecem direitos e deveres para as instituições e os indivíduos em tempos de guerra. A bandeira da punição se apresenta sob a convicção de que ela contribuirá para banir a tortura em nosso país. Somam-se a essa medida, enquanto exigências democráticas, a abertura dos arquivos do período da ditadura e a garantia do direito sagrado e humanitário das famílias dos mortos e desaparecidos políticos de enterrarem seus familiares. Enquanto os arquivos estiverem trancados em cofres se estará negando à nação o direito de conhecer sua própria história e dela retirar lições e enquanto os mortos e, desaparecidos políticos não tiverem um túmulo honroso, haverá uma dívida que a consciência humanista de nosso povo não cessará de cobrar.

Forças políticas democráticas -- das quais faz parte o Partido Comunista do Brasil --erguem e lutam por essas bandeiras com o propósito de realizar tarefas que respondem aos justos anseios da sociedade e que são úteis à plena reconciliação nacional. O campo político progressista não tem interesse algum em cultivar ódio e ressentimentos. Quem tem essa atitude são os renitentes do obscurantismo e do golpismo. A presente situação mundial, marcada por ameaças contra os povos e os países, exige que a nação e suas instituições, inclusive as Forças Armadas, estejam coesas em torno da soberania nacional, da democracia e dos direitos de nosso povo

Brasília, 7 de agosto de 2008
Comissão Política Nacional do PCdoB


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sábado, 2 de agosto de 2008

Elas são tratadas como profissionais de segunda categoria

Legislação brasileira ainda não reconhece a igualdade de direitos e a isonomia entre cidadãos e cidadãs. Medidas adotadas pelos governos não foram capazes de assegurar os direitos trabalhistas e previdenciários inclusivos dessas mulheres.
Este ano, quando se completam 20 anos da promulgação da Constituição Federal, merece ser marcado pelas discussões das pendências em relação aos direitos das mulheres. A Carta Magna de 1988 deixou de fora algumas significativas reivindicações dos movimentos feministas apresentados à época da Assembléia Constituinte. Em que pese ser marco para a abertura democrática do país, que reconheceu formalmente a igualdade de direitos e a isonomia entre as cidadãs e cidadãos brasileir@s, resta nela e após sua publicação uma série de matérias não contempladas ou tratadas de maneira insuficiente; ou ainda que necessitam de regulamentação para sua efetividade.
A proteção às mulheres, especialmente, no trabalho doméstico, é um exemplo de tema tratado de forma não satisfatória. Incidir politicamente para mudar isso é uma das prioridades do CFEMEA, em articulação com a Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (Fenatrad).
O contexto maior em que está inserido esse assunto questiona construções culturais impostas por gêneros, especialmente na sociedade capitalista pautada no sistema patriarcal, que prioriza a posição hierárquica dos homens e subordina as mulheres. O trabalho doméstico foi destinado às mulheres como exercício de atividades “naturais” do sexo feminino. Sendo assim, é um trabalho visto sem necessidade de remuneração (ou quando é pago, é muito mal pago), ou ainda, um trabalho ao qual sociedade, governos e famílias não conferem qualquer valor contributivo para as riquezas do país. Estimativa de Hildete Pereira, Claudio Considera e Alberto Di Sabbato, que pesquisam o tema trabalho na Faculdade de Economia da Universidade Federal Fluminense, dá conta de que cerca de 12,7% do PIB brasileiro advém das atividades domésticas de reprodução social.
A desvalorização do trabalho doméstico está diretamente relacionada a quem o realiza (mulheres, na maioria das vezes negras) e ao tipo de trabalho que se faz (doméstico). Como assinala a feminista Betânia Ávila, o tempo despendido pelas mulheres com a reprodução da vida, com o cuidado de pessoas que não podem se autocuidar (idos@s, crianças, doentes, pessoas com deficiência), com ações essenciais para a própria manutenção das atividades produtivas como educação, vestimenta, alimentação, saúde e abrigo, não é contabilizado como válido para a organização social do trabalho. Esse tempo - diz ela - é fruto da expropriação do trabalho das mulheres.
A construção do tempo validada pelo sistema capitalista é aquele empregado para as atividades da produção, para gerar mais-valia (com jornadas de trabalho definidas e tempo de lazer contado como parte do tempo que sobra das atividades de produção). Assim, falar sobre direitos sociais para uma profissão essencialmente feminina, negra, com baixa escolaridade e pobre e que se realiza na esfera do mundo privado não é tarefa fácil. Mais um obstáculo está no fato de o Estado entender que não deve legislar ou se intrometer na esfera onde se dá o trabalho doméstico. Basta ver os “impedimentos” para a fiscalização das relações de trabalho violentas e discriminatórias que acontecem nas “casas de família”.
Diante dessa realidade, é possível compreender os padrões de desigualdades que configuram o trabalho doméstico: seja o trabalho da reprodução social, do cuidado ou do emprego doméstico. Por isso, a discussão sobre o tema é essencial para a conquista de relações trabalhistas mais equânimes e igualitárias entre mulheres e homens, negras e negros.
Hoje, falar de trabalho é falar de trabalho decente e gerador de cidadania. As organizações nacionais e internacionais que atuam nesse tema já não se contentam apenas na geração de empregos. As discussões em torno da jornada de trabalho, da liberdade sindical, da igualdade de salário para trabalho igual, fim da discriminação, tratamento rigoroso para as práticas de assédio moral e sexual entre outras questões são tratadas em conjunto, para que trabalhadoras e trabalhadores possam atingir condições dignas no exercício de suas atividades.
No que diz respeito ao trabalho doméstico, quando a Constituição Federal e outras leis específicas garantem direitos para @s trabalhador@s numa condição diferenciada e reduz direitos em relação a outros tipos de ocupação, torna-o um sub-trabalho, um trabalho de baixa categorização.
O trabalho doméstico remunerado é a maior profissão feminina do país e está longe de ter garantido direitos iguais e acesso à previdência social. As medidas adotadas pelos governos não foram capazes de assegurar os direitos trabalhistas e previdenciários para milhões de mulheres nessas condições. Garantir a equiparação desses direitos para as trabalhadoras domésticas brasileiras é enfrentar as desigualdades de gênero e o racismo e contribui tanto para o desenvolvimento das relações de trabalho quanto para o aprimoramento da democracia brasileira.

Original em CFEMEA


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