Além do Cidadão Kane

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Incógnitas Russas

Luís Carapinha
Até onde poderão ir as cadencias da Rússia é a questão que se coloca nesta trama que passará nos próximos dias por Lisboa. A sua resposta não será fator despiciendo para os destinos do processo de arrumação de forças global, marcado pelo declínio dos EUA. Porém, a última palavra cabe ao povo russo.”

Mais de 50 mil manifestantes saíram às ruas de Moscou no domingo para saudar o 93.º aniversário da Revolução de Outubro, naquela que o PCFR considerou uma das jornadas mais participadas dos últimos anos.

Na véspera, o presidente Medvedev anunciara o veto da lei aprovada pela Duma que restringia ainda mais o direito de manifestação no país. Na verdade, na Rússia capitalista, mesmo sem a lei aprovada, são cada vez maiores os obstáculos ao direito de reunião e manifestação política. Organizar, legalmente, uma greve é tarefa quase impraticável face ao rol de procedimentos burocráticos previsto, o que se traduz no aumento da repressão sobre o movimento e dirigentes sindicais que se recusam a pactuar com o Kremlin.

A crescente repressão das autoridades nas ruas está longe de se circunscrever aos movimentos liberais associados à cultivada figura de Kasparov, cuja agenda em torno da democracia & CIA goza de lugar cativo na folclórica projeção mediática dominante. Fora do seu foco ficam normalmente todos aqueles que, não abdicando de denunciar a corrupção e os mais variados atropelos aos direitos humanos, os inserem nas reivindicações de ordem econômica e social e na luta por outro rumo, afrontando a questão nuclear de classe do regime e da exploração capitalista na Rússia.

Com as eleições legislativas de 2011 e presidenciais de 2012 no horizonte, o aumento da incerteza na política russa é inseparável dos efeitos agudos da crise econômica.

Ainda não refeita da devastação causada pela desagregação da União Soviética, a Rússia sofreu em 2009 uma contração do PIB da ordem dos oito por cento. Não estancou a hemorragia da fuga de capitais que bateu níveis recorde nos anos 90. O governo russo veio recentemente anunciar um super-programa de privatizações para os próximos cinco anos, que inclui sectores estratégicos como a banca e o petróleo. É oportuno lembrar que, segundo dados divulgados na Rússia, só entre 1992-94 foram privatizadas 88 mil empresas russas, mais de 77 mil das quais por um preço médio de 12 mil dólares! A gigante Gazprom foi vendida por apenas 250 milhões de dólares, mas já em 1997 a sua cotação no mercado bolsista russo era superior a 40 mil milhões de dólares.

No rescaldo da onda de saque e ruína que marcou a período de Ieltsin, o capitalismo russo viu-se obrigado a erguer as bandeiras do «interesse nacional» e a retomar a posição majoritária na Gazprom e a favorecer a reconstituição de holdings estatais. Orientação que foi sempre mal suportada pelo «partido de Washington» alojado nos corredores do poder bicéfalo em Moscou, para quem limitar o investimento estatal é eterna prioridade.

A política russa baila ao ritmo compassado do canto da sereia do reset com os EUA, proclamado por Obama e Medvedev. Para o imperialismo é tempo de acenar com a cenoura de um falso apaziguamento das ameaças estratégicas montadas à Rússia fora e dentro das suas fronteiras (a desestabilização recorrente do Cáucaso, a que assistem também razões intrínsecas ao capitalismo russo, deve lembrá-lo). Os EUA prometem «ajudar» na adesão à OMC. A Alemanha convida a Rússia a juntar-se a um eventual projeto anti-míssil «conjunto» com a NATO e Rasmussen adoça o ar sovina para falar «seriamente» de uma parceria estratégica com a Rússia. Ganha cobro a campanha que defende a adesão da Rússia à NATO, que um relatório do influente IISS vem também agora sugerir.

Moscou parece responder com cadencias de monta no Afeganistão e Irão, ao mesmo tempo em que reforça o relacionamento crucial com Pequim e Medvedev visita as ilhas Curilhas numa altura em que os EUA pressionam a China no dossiê territorial, ao lado das pretensões do Japão.

Até onde poderão ir as cadencias da Rússia é a questão que se coloca nesta trama que passará nos próximos dias por Lisboa. A sua resposta não será fator despiciendo para os destinos do processo de arrumação de forças global, marcado pelo declínio dos EUA.

Porém, a última palavra cabe ao povo russo.

* Analista de política internacional

Este texto foi publicado no Avante nº 1.928 de 11 de Novembro de 2010.

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Um comentário:

Julio-Debate Popular disse...

Basta pensar que a Rússia deveria emergir, é pelo menos o que é visualizado. Eu acho que a sua estratégia e alianças estratégicas não ficar mal.

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