Além do Cidadão Kane

sexta-feira, 20 de maio de 2011

A proibição da Marcha da Maconha e liberdade de expressão

 Marco Magri


As seguidas proibições da Marcha da Maconha é mais um entre os episódios que deixam transparecer um lado nefasto da realidade brasileira: o conservadorismo do sistema judiciário. Sob as mais infundadas acusações – “defendem o uso indiscriminado de drogas”; “querem acabar com a família”; “são traficantes” – alguns Estados do País interpretam a mesma lei que permite aos seguidores de Bolsonaro se manifestarem, com proteção policial, de maneira invertida para impedir pessoas de expressarem sua opinião sobre a atual lei de drogas proibicionista.

Na Alemanha da República de Weimar, após a dissolução da monarquia e com o advento de um inicio de país republicano, Walter Benjamin ressaltou como fundamental a presença de um judiciário reacionário – que tinha permanecido intacto dos tempos do Kaiser e guardava um ranço antipopular muito forte – como fator de auxílio da ascensão do nazismo. Ficava evidente a forma na qual operava seletivamente essa justiça, que condenou Hitler a apenas um ano de cadeia depois de sua primeira tentativa de agitação, enquanto membros de organizações de esquerda amargavam longos períodos no cárcere. E foi justamente logo após ser liberado que Hitler conseguiu começar sua campanha que terminou no genocídio de milhões.

No Brasil, somos, igual e perigosamente, incapazes de enfrentar os fantasmas e herença das masmorras das ditaduras. Isto fica claro na recusa do STF em abrir processos para punir torturadores, que cometiam crimes de lesa humanidade e continuam impunes, caminhando pelas ruas. E não são apenas as pessoas físicas que cometeram tais crimes que têm livre circulação - o que é mais preocupante são suas ideias, que permanecem e dão margem aos mais terríveis arbítrios. No Brasil, os casos de tortura aumentaram consideravelmente após o fim da ditadura, desta vez direcionada principalmente contra a população pobre. E também temos um sistema judiciário extremamente leniente com massacres contra os trabalhadores pobres, como vemos no caso do Eldorado de Carajás (impune), Massacre do Carandiru (impune), crimes de maio de 2006 (impune).

No caso das drogas, a justiça é especialmente seletiva quando se trata de punir. Se um branco é pego com 10 gramas é tratado como usuário, assina, paga propina. Um negro? Traficante. E as drogas são a justificativa cotidiana para violações de direitos humanos e violência policial, ou seja, para garantir o estado de sítio, para garantir a dominação, a apatia e a falta de participação, o isolamento e tudo mais que disso decorre.

E é do conservadorismo do judiciário que vemos atentados violentos contra a liberdade de expressão no seu sentido mais amplo. No sentindo que foi mais reprimido ao longo da história brasileira, da liberdade de se reunir, da liberdade de lutar por mudanças. Apologia ao crime, acusam. Só se for apologia ao crime de pensar, de debater, de recusar aceitar uma lei que é extremamente danosa e irracional. Toda apologia questionadora é contra a ordem, portanto, uma apologia perigosa, tal qual foi a apologia da abolição da escravidão, o negócio mais lucrativo que havia sob o sol, perigosa como a defesa do sufrágio universal, do voto feminino e de tantas outras lutas democráticas, libertárias. Era apologia ao crime defender o fim da própria ditadura.

Vivemos essa repressão, que se reflete em atraso e incapacidade de superar erros e avançar para um outro tipo de sociedade, capaz de fazer os debates de forma aberta. O exemplo da proibição da Marcha da Maconha em alguns estados nos mostra como nosso poder jurídico, invariavelmente apoiado pelo executivo (a prefeitura de Atiabaia se pronunciou, em nota pública, contra a Marcha) e pelo legislativo (a proibição da Marcha em Curitiba foi feita a pedido de um deputado evangélico do PSC), não tem a menor vocação para a democracia, está parado em algum lugar entre 1964 e 1985.

Sustentados por argumentos jurídicos sem qualquer fundamento, buscam tolher o livre debate na sociedade. E eles sabem muito bem que não têm argumentos, por isso, procedem de forma astuta ao entrarem com o pedido de proibição sempre às vésperas do evento, de modo que não haja tempo hábil para uma resposta legal. Passada a Marcha, o assunto “prescreve”.

Espera-se para as próximas semanas o julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF) de ação da Procuradoria Geral da República contra a proibição das marchas da maconha. Não se pode esperar outra decisão do Supremo que não salvaguardar o livre direito à expressão e manifestação por parte dos membros da Marcha, que querem simplesmente poder discutir as políticas de drogas brasileiras de forma aberta e séria. Sem mordaça.
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Marco Magri é cientista social, mestrando em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e integra o Coletivo DAR (Desentorpecendo a Razão) e a Marcha da Maconha SP.
 

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