Entre 1972 e 1989, Itália viveu um conflito que muitos analistas definem como “guerra civil de baixa intensidade”
Achille Lollo
NO DIA 12 DE dezembro, será o 40º aniversário dos trágicos massacres de Praça Fontana, em Milão (17 mortos e 88 feridos); e no Banco Nacional do Trabalho e Praça Veneza, em Roma (17 feridos), que foram planejados, em fevereiro de 1969, pelos homens do serviço secreto italiano (SID) e realizados pelos neofascistas ligados à Célula Veneta de Freda e Ventura, em coligação com os grupos neofascistas de Ordine Nuovo e de Avanguardia Nazionale, liderados por Pino Rauti e Stefano delle Chiaie. Esses atentados a bomba – que foram monitorados por David Carret da Base de Operações da CIA na Itália e apoiados pela Célula maçônica P2 de Licio Gelli – marcaram o início da “Estratégia da Tensão”, na Itália, que os centros de inteligência dos então governos democrata-cristãos (Giulio Andreotti, Taviani, Rumor e Fanfani) introduziram no contexto político do país com o objetivo de utilizar a direita neofascista para romper a inesperada evolução das lutas do movimento sindical e popular, após a criadora efervescência política, em 1968, do movimento estudantil. Por sua parte, a CIA acreditava que a existência de diferentes projetos eversivos (o Plano Solo do general do SID, Vito Miceli; o Plano Gládio de Edgardo Sonho; a intentona golpista de Valério Borghese; e o bombismo de Ordine Nuovo e Avanguardia Nazionale) podia acelerar o processo de desestabilização política do governo de centro-esquerda e determinar a mesma situação de crise política que, na Grécia, no dia 21 de abril de 1967, abriu as portas ao golpe de Estado sob a liderança do coronel Georgios Papadopoulos. De fato, após os atentados de Milão e Roma, a polícia, a Justiça e a mídia afirmavam que a matriz política dos atentados era esquerdista, e que seus autores materiais eram militantes anarquistas, abrindo assim a “caça ao vermelho”.
Intentonas golpistas
Foi nesse clima de atentados e agressões aos militantes do movimento estudantil e sindical por parte dos grupos neofascistas que, na noite do dia 7 de dezembro de 1970, Junio Valério Borghese, líder da organização neofascista Fronte Nazionale, com o apoio do Ministério do Interior, de vários setores das Forças Armadas, da Polícia Florestal, do SID e, evidentemente, da CIA, iniciava um golpe de Estado em Roma e Milão que duraria somente oito horas, porque os golpistas não aceitavam entregar o poder ao ministro democrata-cristão Giulio Andreotti. De fato, no momento de legitimar a intentona com a adesão das unidades de elite da Otan, a CIA exigia que o poder fosse entregue a Andreotti para que ele pudesse jogar o papel de pacificador nacional. A derrota política da intentona golpista virou uma piada judiciária, e por isso os grupos da esquerda extra-parlamentar (Potere Operaio e Lotta Continua) lançaram, junto ao movimento popular, palavras de ordem revolucionárias em favor de uma ruptura insurrecional, tendo em conta a paralisia dos partidos da esquerda reformista, o PCI (comunista), o PSI (socialista) e o PSDI (social-democrata).
Cesare Battisti viveu aquele contexto histórico e, em vez de se fechar “no pessoal das drogas e das diversões tecnológicas” escolheu “a opção das lutas políticas”
A “Estratégia da Tensão” foi abrilhantada com cinco tentativas de golpe de Estado para acelerar a militarização da parte oculta do estado de direito e para “educar” os grupos dirigentes do PCI, do PSI e das confederações sindicais (CGIL/CISL e UIL). No momento, a “autonomia operária” havia tomado conta das fábricas do norte e das universidades das grandes cidades, tornando-as autênticos vulcões prontos a explodir em todo o território nacional. Assim, quando, em 1972, a reestruturação capitalista – com o silencioso monitoramento dos dirigentes e sindicalistas do PCI – começou a entrar nas fábricas italianas, a resposta dos operários foi excepcional e, por isso, uma parte da esquerda revolucionária começou a acreditar na possibilidade da “ruptura revolucionária”, aceitando um combate armado que, inicialmente, foi fácil e brando, para depois endurecer e ocupar 17 longos anos da história italiana em um conflito que muitos analistas definem como “uma guerra civil de baixa intensidade”. É nesse clima que, em 1972, começaram as primeiras operações de guerrilha urbana das Brigadas Vermelhas.
Os Anos de Chumbo
Todos os governos italianos e sua classe política negaram as responsabilidades políticas do Estado na implementação da “Estratégia da Tensão”, que, de 1968 até 1972, organizou e fomentou a violência dos grupos paramilitares neofascistas. Igualmente negam que, de 1973 até 1989, ficou legitimado o “Direito do Estado de direito” em abusar no uso de seus ditos “corpos separados” (serviços secretos, unidades antiterrorismo, tribunais especiais, leis especiais antiterrorismo). Também negam que esse aparelho repressivo ainda continue em atividade. A mídia corporativa se especializou em manipular e reduzir esses 17 anos de história e violência política em poucos factóides que os juízes do antiterrorismo elegeram como “casos especiais”. Por outro lado, todos os procedimentos judiciários nos quais estava demonstrada a mão oculta do Estado desapareceram. Por exemplo, o Tribunal Supremo italiano (Cassazione) e a Corte de Apelação anularam cinco dos sete julgamentos do massacre de Piazza Fontana, que condenavam agentes secretos e neofascistas, para declarar que “não havia culpados para aquele massacre” e obrigar os familiares das vítimas a pagar as despesas judiciárias. Cesare Battisti viveu aquele contexto histórico e, em vez de se fechar “no pessoal das drogas e das diversões tecnológicas”, escolheu “a opção das lutas políticas”, aderindo ao PAC, um pequeno grupo clandestino do qual ele – diferentemente do que juízes e delatores dizem – nunca foi dirigente ou ideólogo. No dia 23 de novembro, esse militante dos anos de 1970 encerrou uma greve de fome de protesto contra uma classe política que, 20 anos após o fim da luta armada, ainda utiliza a lógica e os fundamentos da “Emergência Antiterrorista” para desviar a atenção do povo dos problemas reais da sociedade italiana e propor julgamentos e vinganças virtuais contra o último dos 140 “Judas Taddeo” da luta armada, ainda vivos no exílio.
O novo Coliseu
Foi nesse contexto que, no dia 26 fevereiro de 2008, os deputados Giuliano Cazzola (PdL) e Giovanni Bachelet (PD), representando o governo e a oposição, elaboravam um documento sobre o caso judiciário de Battisti para que, em nome do Parlamento italiano, não fosse reconhecida a autoria política dos crimes pelos quais foi condenado e, assim, evitar que nos fóruns internacionais fosse sublevada a tese do crime político pelo qual quatro tribunais italianos o condenaram. Por isso, a Embaixada italiana em Brasília “ofereceu” ao relator Cezar Peluso e ao presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Gilmar Mendes, o documento do Parlamento. Por “mera casualidade”, esses juízes do STF formularam suas teses acusatórias da mesma forma e com a mesma conceituação jurídica elaborada pelos deputados italianos Cazzola e Bachelet. Alguém escreveu na revista Carta Capital que o estado de direito italiano não vai permitir vinganças e persecuções contra os antigos “terroristas”. Porém esse alguém não tem a coragem de revelar que todo o Parlamento italiano, ao conhecer o voto de Gilmar Mendes, se levantou de pé para bater palmas e gritar frases de vingança e desejo de morte para Battisti nas prisões italianas. Tanto é que o próprio deputado Bachelet, diante dessa escandalosa manifestação de vingança política, logo declarava textualmente “Peço desculpa a Cesare Battisti pelos tons que foram utilizados na aula do Parlamento”. Na verdade, o deputado Bachelet manifestou sua desculpa apenas para esconder o real sentimento de vingança e de perseguição que uma classe política inteira (incluindo os ditos progressistas do PD) evidenciou, ainda, contra quem não aceitou o papel do arrependido, além de criticar o autoritarismo do Estado neoliberal italiano. É bom lembrar que, em 1999, a proposta de lei de anistia foi deliberadamente afastada em função da renúncia do então PDS (ex-PCI), o qual decidiu não se posicionar para não quebrar o arranjo eleitoreiro com os setores moderados da sociedade italiana. Por isso, Olga D’Antona, outra deputada do “progressista” PD, empolgada com o voto de Gilmar Mendes, logo propôs ao Parlamento: “vamos recomeçar a ofensiva contra a França para obter a extradição da ex-brigadista Marina Petrella” (que foi negada pelo presidente Nicolas Sarkozy por motivos humanitários). Quer dizer, depois de Battisti, também a morta-viva Marina Petrella deverá ser sacrificada nas prisões italianas! Diante desse quadro, é evidente que Battisti não vai ficar “vivo” por mais de seis meses nas prisões italianas, apesar do artigo 27 da Constituição dizer que “as condenações visam à reeducação do condenado”. Isto porque Battisti vai sofrer com o sentimento de vingança de um Estado (e de seus corpos separados) que nos últimos dez anos perdeu todos os processos de extradição na Nicarágua, no Brasil, na Argentina e na Espanha.
Morte Branca
Um sentimento de vingança e de perseguição que passa pelo encarceramento nas prisões especiais com a aplicação do artigo do Código de Procedimento Penal 41Bis, com base no qual o preso sofre com as normas do isolamento especial – que prevê rígidas restrições, tais como visita mensal só com parentes diretos e em locais separados por vidros; veto de usar computador, rádio, televisão; de receber livros, jornais, revistas e alimentos e de preparar sua comida; de ter um “banho de sol” de uma hora por dia em locais com apenas dois presos; de não ter direito à assistência médica externa; de ter a correspondência previamente lida por agentes do antiterrorismo; e de ter as conversas com os advogados gravadas. Alguns comentaristas brasileiros – ao assumirem as “pautas editoriais do governo italiano” – argumentaram que as prisões italianas são “um hotel” e que Battisti, em poucos anos, vai ganhar a liberdade. Na realidade, a situação dos presos nas penitenciárias italianas é, de fato, dramática e se torna pública somente quando os familiares denunciam o “assassinato” ou o “suicídio” de seus parentes presos. Casos como estes ocorreram no dia 16 de outubro, quando Stefano Cucchi, dependente químico de 25 anos, foi torturado até a morte pelos agentes penitenciários na prisão de Roma; no dia 2 de novembro, quando Diana Blefari Melazzi, ex-militante das Brigadas Vermelhas, de 38 anos, não suportando mais o isolamento do 41Bis, se suicida na prisão romana de Rebibbia; no dia 19 de novembro; quando Giovanni Lorusso, de 41 anos, após protestar porque os agentes penitenciários “seguravam” sua ordem de soltura do tribunal, foi encontrado enforcado na prisão de Palmi; e no dia 20 de novembro, quando M. A., menor marroquino, foi encontrado enforcado na ducha do instituto penitenciário de Florença.
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No sistema penitenciário italiano, nos últimos 11 meses, houve 62 suicídios de presos comuns e um de preso político, além de outras 243 mortes por “fatores naturais”, muitas delas por falta de assistência médico-hospitalar. Além disso, o atual governo modificou a metodologia da redução de pena (Lei Gozzini), que já não é um benefício automático, e que agora depende do parecer dos juízes do tribunal. No caso dos presos políticos que não colaboraram com a polícia ou que continuam enquadrados no 41Bis, são suspensas as normas da Lei Gozzini, bem como todas as formas de recuperação mencionadas pelo artigo 27 da Constituição. Para os condenados ao ergástolo (prisão perpétua), a referida Lei Gozzini de redução de pena é aplicada somente após 25 anos de prisão. Finalmente, os juízes italianos, por mera implacabilidade judiciária, não unificaram as quatro condenações de Battisti, de forma que, se ele conseguir continuar “vivo” no período de 25 anos do primeiro ergástolo, continuaria preso para cumprir o segundo e depois o terceiro e o quarto. Isto é, seria solto após 100 anos de prisão!
Achille Lollo, jornalista italiano, é autor do documentário “Palestina, Nossa Terra, Nossa Luta”.
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