Além do Cidadão Kane

domingo, 23 de agosto de 2009

Meninas e meninos da Guatemala…Humilhados e esquecidos

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Tradução Rosalvo Maciel
Rebelión

Em um país onde quatro de cada cinco habitantes vive na miséria e onde existem mais de 4 milhões de crianças, constituem 25% da força de trabalho. Oscilam entre os 5 e os 15 anos, trabalham até 18 horas diárias e se originam, cerca de 70%, de áreas rurais ocupadas majoritariamente por indígenas maias. São 1,2 milhões de pequenos proprietários que colocaram a Guatemala no primeiro lugar em exportação de ervilha, o quinto de açúcar e o oitavo de café. Mas também no primeiro, em toda a América Central, por exploração infantil.

São evidencia do desinteresse. Sua vida é difícil, cíclica e desamparada. São produto da crise do minifúndio e da derrocada do café ocorrido em 2000 que obrigou a famílias inteiras a emigrar para as cidades e as foi deslocando, fragmentando, transfigurando… São o resultado de um sistema que não lhes tem construído escolas (nem sequer nos lugares devastados pela guerra) ocasionando um nível de escolaridade de 2,3 anos, e inclusive menor nas áreas indígenas: 1,3 anos. E são produto dessa imigração que antes era inimaginável acontecer sem os adultos, mas que hoje eles efetuam solitários e esperançosos.
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São meninas e meninos interligados por uma historia similar: originam-se em lares extremadamente pobres onde os pais necessitavam apoio adicional para o sustento coletivo. Antes de abandonar sua casa ajudaram na própria, trabalharam onde um familiar, um vizinho ou com o patrão da família. Depois, aqueles que não se mantiveram no campo, o deixaram com o desejo de obter dinheiro para saldar contas e necessidades.
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Os meninos são engraxates, pulverizam e cortam cana de açúcar, cuidam carros, casas e prédios, trabalham como jardineiros, em construção e restaurantes, derrubam árvores, recolhem lixo, são ajudantes de motoristas e até condutores de microônibus, mesmo que não passem dos 13 anos nem tenham licença para conduzir e seus ajudantes tenham a mesma idade… Conduzem por ruas de povoados onde não há nem sinalização, nem polícia… Trabalham o dobro, o medo espantam nos primeiros assaltos, se tem deixado explorar sem sabê-lo e em muitos casos têm sido engolidos pelas cidades onde a fome e as barreiras lhes convertem em delinqüentes.
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As meninas, que em 99% são indígenas, enfrentam o isolamento. Trabalham em vendas informais, mercados, feiras e lugares turísticos, ajudam em restaurantes comunitários, selecionam pepinos, fazem tortilhas, preparam comida para trabalhadores, empacotam flores e descascam ervilhas. Ou estão nas “maquiladoras” (conhecidas por seus abusos e violações aos diretos humanos) ou como domésticas, um trabalho cobiçado porque têm onde dormir, ainda que lhes implique jornadas até de 20 horas nas quais cozinham, servem a mesa, limpam a casa, atendem a “seus patrões”, costuram, fazem compras, lavam a roupa, passam e cuidam de crianças menores do que elas. Cerca de 98% do serviço domestico na Guatemala é realizado por meninas que começam estes ofícios antes de completar dez anos.
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Também, sem distinção de gênero, são vistas limpando terrenos, cultivando e colhendo verduras, especialmente hortaliças, e colaborando nos trabalhos de adubação. Saem muito cedo de suas casas ou pernoitam onde trabalham, seu refugio são os parques por ser uma réplica nostálgica que fazem de seu povoado de origem e porque neles ninguém os julga e ali se encontram com seus amigos e existe a opção de alguma nova oferta de trabalho. É fácil reconhecê-los: são menores, são pobres e vem do campo… São maias que percorrem, com suas tradicionais mochilas ou saias maias, centros comerciais, paradas de ônibus, igrejas e cemitérios. Elas e eles trabalham porque é sua obrigação, o fazem por seus pais e irmãos, por comida, por dinheiro, para pagar uma divida familiar... A maioría trabalha até 20 horas recebendo salarios míseráveis. Se tiverem menos de 14 anos não recebem mais do que 30 dólares por mês, e se têm mais de 15 o máximo que ganham são 47. O que menos ganha “ganha nada”, porque os pais já cobraram, ou porque o “patrão o convence” que ter um “trabalho já é suficiente”, e então são explorados com desfaçatez e, em alguns casos, maltratados ou transformados em vítimas de abuso sexual.
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No campo elas e eles pastoreiam ovelhas, cortam e recolhem lenha, fazem carvão, trabalham nas propriedades, semeiam café, açúcar, canela, flores e verduras.
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Na cidade as coisas se complicam: tendo entre quatro e 14 anos “ingressam” na indústria pirotécnica fabricando foguetes e fogos artificiais sem nenhum tipo de segurança, e são muitas vezes vítimas de explosões de pólvora ou intoxicação. São 3 mil e 700 meninos e meninas que em troca recebem tão somente alimentação, roupa e sapatos.
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Ou também (de acordo com a Organização Não Governamental ‘Casa Aliança’, a Coordenadora Nacional de Organizações Indígenas e o Conselho de Organizações Maias) exercem contra sua vontade a prostituição (mais de 15.000), são utilizados na indústria pornográfica (sobre todos os membros da etnia Kakchiquel) ou como escravos para descarregar caminhões que transportam materiais de construção.
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Os indígenas, presa fácil
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No caso das comunidades autóctones, as 21 etnias que constituem a população indígena, residem em doze dos 22 departamentos guatemaltecos, na costa e no ocidente. Na sua maioria não sabem ler nem escrever e dificilmente falam castelhano. Por isso, e pela miséria, a discriminação, a ausência de um serviço de crédito e pela perda de terras que sofrem, são vítimas importantes no fenômeno da exploração infantil.
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Para o ‘Programa Internacional para a Erradicação do Trabalho Infantil para América Central, Haiti, México e República Dominicana’ da OIT, o cultivo e corte de cana e colheita de café são as mais abjetas formas de exploração do trabalho que suportam os adolescentes indígenas. Estes devem abandonar seus estudos e pôr em risco a saúde, já que as famílias se deslocam até as grandes propriedades nos tempos de colheita, que são bastante exigentes: o café tem um ciclo de 8 meses e os canaviais estão prontos para o corte em novembro. Não há então oportunidade para os estudos, pois o ano escolar vai de janeiro a outubro. Sua vida - a que pretendiam transformar radicalmente - transcorre no confinamento e em jornadas que começam quase à meia noite com a preparação de alimentos e tortilhas para os trabalhadores, e terminam no dia seguinte. Não lhes sobra tempo para brincar nem estudar, e o descanso acontece onde lhes oferecem como único espaço habitacional: a cozinha, da qual não saem e a qual muitas vezes devem compartilhar com outros meninos e vários adultos.
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Segundo a OIT, quase 500 mil meninas, meninos e adolescentes maias vivem essa vida que em ocasiones muda de cenários, não menos escravagistas, como o do comercio e das fábricas. Ou o pior, em razão de que os salários são menores, pois a colheita lhes dá só 47 dólares por mês, ajudam a cortar e recolher papoula e maconha. Por arbusto recebem 2,6 dólares. Não há outra saída desde que caiu a produção dos produtos agrícolas.
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Os menores - indígenas ou não - têm muita procura porque não conhecem seus direitos, não sabem protestar, ignoram o valor de salários e o que vale seus ofícios. Alem disso, os escolhem porque são melhores trabalhadores, suas mãos são pequenas e não estragam as verduras, porque são mais rápidos, mais baratos, mais dispostos a trabalhar de noite e até 24 horas seguidas… E porque o lúdico neles é uma vantagem para explorá-los. Sabe-se, por exemplo, que no campo contratam crianças entre os 7 e os 12 anos para que descasquem vegetais e ainda que esta tarefa cause lesões nas mãos, olhos e vias respiratórias, as crianças ficam felizes brincando imaginando outros cenários e esquecem ou não reconhecem a dor.
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O certo é que as extensas e árduas jornadas de trabalho lhes conduzem ao abandono definitivo da escola: 400 mil crianças trabalhadoras estão fora do sistema educativo.
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Seus pais não podem nem querem evitá-lo. Sua atitude permissiva, e em ocasiões de imposição, é uma estratégia de sobrevivência, e certos elementos culturais sustentam esta situação, por exemplo, que as meninas maias só servem para domésticas e que, em geral, ser indígena “não tem valor”. Daí a submissão, a perda de auto-estima por sua estatura, o permitir que se lhes discriminem por seu idioma e suas vestimentas e se lhes condene, às mulheres, a permanecer na cozinha e a limpar, e aos homens, a não aspirar a nada diferente do que a servidão.
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Os perigos que enfrentam são muitos. Os riscos físicos e psicológicos inevitáveis. Alem disso, carecem de vínculos com os fatores protetores, com a família e com a escola. O governo reage de maneira passiva porque não há um plano nacional, condena aos delinqüentes, mas não atua para evitar que os menores cheguem a sê-lo. Não lhe preocupa que não tenham os serviços de saúde, de recreação e educação. Parece-lhe abominável ver crianças na rua, mas não faz nada para evitá-lo. E o mais condenável, havendo já firmado e ratificado o Convenio 182 da OIT (que define as piores formas de trabalho infantil e sua imediata eliminação, entre as quais se inclui a utilização de crianças em trabalhos que prejudicam sua saúde, segurança e moralidade), segue indiferente… imóvel.
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Ofélia
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Ofélia Chiroy Sebaquijay é um espelho que multiplica a realidade na Guatemala, ainda que hoje a leva só em suas lembranças. Tinha nove anos e cursava o terceiro grau quando perdeu seu pai. Um dia chegou da escola e o encontrou agonizante. Estava bêbado e havia ingerido inseticida porque, angustiado pela falta de dinheiro, quis tirar a própria vida. Ofélia o recorda assim, tanto como recorda quanto o queria, a dor que lhe causou essa perda e o que implicou em sua vida. Uma semana depois avisou a sua mãe que ia trabalhar, pois sabia que o que ganhava no campo e na casa era insuficiente.
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E assim Ofélia, que havia nascido maia em Santa Maria de Cauque, um município de Sacatepequez onde se semeavam verduras, se somou à cadeia de crianças trabalhadoras. Seus dois irmãos estavam casados e não contribuíram com a casa, e de suas três irmãs só uma, a maior, se uniu a ela para assumir a economia do lar.
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Sua mãe não queria que abandonassem o estudo, mas Ofélia insistiu. Seu primeiro trabalho foi no povoado servindo como empregada de uns familiares da esposa de um de seus irmãos. Alí esteve um ano. Trabalhava das 6 da manhã às 8 da noite e lhe pagavam 200 quetzales por mês. Não tinha descanso. Primeiro lhe disseram que se encarregaria da limpeza, mas logo lhe encarregaram da cozinha e tudo o que fosse necessário. A remuneração não aumentou e embora nunca a tenham batido, a fizeram alvo de repetidas ofensas verbais. Dormia ali e aos domingos ia visitar sua mãe.
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Ofélia não voltou a brincar, nem a estudar. Sentia saudade da escola e de suas amigas de aula e de brincadeiras, e desviava seu olhar porque se sentia terrivelmente mal sendo uma criada aos nove anos.
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Farta dos maus tratos de seus patrões, aceitou sem pensar a oferta que lhe fizeram em uma cooperativa de acondicionamento de ervilhas. Tinha que tirar-lhes a casca perfeitamente e empacotá-las. Trabalhava todos os dias das 7 da manhã até quando fosse necessário, pois os pedidos se davam em horas diversas, meia noite ou três da madrugada. Trabalhava até o amanhecer, saía para o café e para preparar o almoço de sua casa, para logo voltar sem haver dormido. Era esgotante, suas mãos doíam e varias vezes seus olhos se infectaram. Com ela trabalhavam cinqüenta crianças, mas não falavam muito entre si porque perderiam tempo e a possibilidade de ganhar mais dinheiro. Pagavam-lhes, “se fossem rápidos”, até 300 quetzales por mês. Ofélia, ainda que explorada, era feliz por receber dinheiro e porque “ao menos” seu patrão fora amável. Ofélia guardava para ela 200 e o resto entregava a sua mãe, a quem ajudava em casa nos domingos quando regressava à vila. Também ia à igreja.
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Não queria pensar no que produzira dor, já que acreditava que sua situação jamais mudaria.
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Um dia, uma amiga que participava nas atividades de um projeto social, lhe perguntou se queria estudar. Ofélia se encheu de alegria e assentiu. Comentou com sua mãe e esta aprovou imediatamente. Queria estudar e enquanto providenciavam sua vaga, participou nas atividades culturais, oficinas e bailes da associação.
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Passou o tempo e seu espírito se foi fortalecendo. Deixou de trabalhar aos 13 anos e lhe convidaram para ser promotora, lhe pediram para que contasse sua experiência, suas dificuldades e sua esperança, a outros meninos e meninas. Aceitou, lhe financiaram o estudo e depois lhe propuseram trabalhar nos fins de semana re-educando a outros menores, em troca de 2.500 quetzales por mês.
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Hoje, vive feliz, faz o que gosta. É orientadora, dá aulas a crianças que não sabem ler nem escrever. Tudo aprendeu escutando e observando a seus tutores, ao ponto de apaixonar-se e planejar ter como profissão ser educadora.
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Ninguém a repreende nem a insulta nem a explora, cursa o terceiro básico e é boa aluna. Contribui economicamente em sua casa, divide com seus amigos seu riso fácil e sua habilidade no futebol. Também lê contos, escuta música, dança os ritmos de sua região e gosta do som das marimbas e dos trajes típicos maia. Alem disso viaja a outros países contando a realidade do seu próprio e suas próprias vivências.
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Não tem namorado. Sua prioridade é entrar na universidade. Não quer nem pode esquecer as condições de sua pátria e considera que nenhum menino ou menina menor de 16 anos deveria trabalhar. Confessa que vê-los trabalhando lhe produz tristeza porque em sua vila há muitas meninas que trabalham desde as 5 da manhã até as 10 da noite, e se põe a pensar que elas cuidam crianças, quando elas mesmas deveriam ser cuidadas. E lhe causa tristeza ver sua irmã que segue trabalhando e que já não estudará porque é maior e sente vergonha e prefere seguir nas “maquiladoras”.
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*Mónica del Pilar Uribe Marín: Jornalista free-lance internacional, especializada em Direitos Humanos, Política e Meio Ambiente. uribemonic@hotmail.com.
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