Os 25 anos da ascensão do primeiro governo democraticamente eleito na Argentina depois da ditadura militar (1976-1983), encontram o país, após mais de 20 anos de impunidade, em lento desenvolvimento de julgamentos contra o Terrorismo de Estado e a construção de memória e verdade, na intenção de recuperar o tecido social destruído. Esse processo, no qual se destaca as organizações Familiares, Mães e Avós da Praça de Maio, começou bem, continuou mal e somente agora os responsáveis por crimes de lesa-humanidade, militares e civis, voltam a ser julgados, condenados e encarcerados.
Por Dora Salas*
O quarto de século que transcorreu desde 10 de dezembro de 1983, mesmo com seus altos e baixos, demonstrou um profundo compromisso do povo com a democracia. Os organismos de direitos humanos que lutaram primeiro pelo "aparecimento com vida" de 30 mil desaparecidos, e em seguida por verdade e justiça, foram um exemplo mundialmente reconhecido.
O subsecretário de Direitos Humanos do país, Luis Alén, a presidente da associação das Avós da Praça de Maio, Estela Carlotto, e Angela "Lita" Boitano, da organização Familiares de Desaparecidos e Detidos por Razões Políticas, em entrevista a ANSA, coincidiram ao destacar estes aspectos no seu balanço do período.
Advertiram, no entanto, que "ainda existem coisas pendentes", mas o muro de impunidade começou a ser derrubado em 2003 e vem sido construída uma "política pública em matéria de Direitos Humanos, para continuá-las em futuros governos", destacou o subsecretário.
O arranque otimista de 83 teve seu primeiro contraste quando o governo desprezou o pedido das organizações de instalar uma Comissão Legislativa Bicameral para investigar o que aconteceu com os desaparecidos, como lembrou Angela.
A esperança se recuperou parcialmente com a criação da Comissão Nacional contra o Desaparecimento de Pessoas (Conadep), em 1984, que recolheu denúncias de numerosos familiares e publicou o "Nunca Mais", um informe a respeito dos horrores da ditadura, base do julgamento do ano seguinte das primeiras juntas militares.
A ação do Conadep, presidida pelo escritor Ernesto Sábato, "foi resgatável, mas equiparava a violência oficial a atos de particulares, que jamais poderiam estar no mesmo plano", disse Alén.
O julgamento de 1985 das juntas militares que incluiu, entre outros, o ex-general Jorge Rafael Videla e o ex-almirante Emilio Massera, satisfez "em parte" dos familiares, que "sem analisar muito, choramos de emoção", disse Angela.
O julgamento e o Conadep foram passos importantes, sem precedentes, mas "com a debilidade política oficial desse momento, os pedidos de julgamento antecipavam a teoria dos dois demônios, que pretendia equiparar as cúpulas militares com cúpulas de organizações armadas", peronistas e de esquerda que atuaram antes e durante a ditadura, disse o subsecretário.
Porém, o mal-estar militar pelo julgamento às Juntas não demorou a se manifestar e em 1986 o presidente Raúl Alfonsín (da União Cívica Radical, 1983-1989) expediu uma "Lei de Ponto Final" de todos os processos, uma "fraqueza ética", segundo Alén.
Essa lei e a da "Obediência devida", do ano seguinte, levantaram um muro de impunidade que em 1990 consolidou o presidente peronista Carlos Menem (1989-1999), com indultos a favor dos poucos repressores julgados e condenados. "Mas nós e o homem do povo nunca baixamos os braços, e hoje está sendo reconstruído o tecido social, mesmo que ainda falte muito por fazer, como em trabalho, moradia e saúde", comentou Carlotto.
A luta dos organismos de Direitos Humanos nunca foi encarada como vingança pessoal, em um "forte e exemplificado compromisso democrático", afirmou Alén.
O governo de Néstor Kirchner (2003-2007) abriu um novo panorama, que se evidenciou logo depois de sua posse, na Assembléia Geral da ONU, em Nova York, quando Kirchner se disse "filho" das Mães e Avós da Praça de Maio.
Continuou a reformulação das cúpulas militares, mudanças na Corte Suprema de Justiça e nulidade por inconstitucionalidade das leis de anistia, que fizeram com que os afetados fossem buscar justiça no exterior, principalmente na Espanha, Itália e França, onde houveram processos e condenas.
Além disso, a Escola de Mecânica da Marinha (Esma) foi transformada em Museu da Memória, e desde 2004, organizações de direitos humanos planejam diferentes atividades nesse amplo prédio.
"Os Direitos Humanos são agora política de Estado" e já se pode pensar em "reconstruir o tecido social" porque "a consciência da impunidade agrava as feridas no corpo social", de acordo com os entrevistados.
Quase 370 militares presos, 800 indiciados e mais de 60 condenados, entre eles o pároco da polícia Christian von Vernich, considerado culpado em 2007 por crimes de lesa-humanidade, marcam a renovação da Justiça.
Mas, até o momento, foram identificados apenas 95 dos 500 bebês roubados de suas mães em campos de seqüestro, e localizadas quatro maternidades clandestinas, entre elas a Esma.
Carlotto ainda advogou pela recuperação da verdade histórica e pela confiança da política em criar uma cultura democrática num país que entre 1930 e 1983 viveu seis golpes de estado.
* Dora Salas é jornalista
Original em Vermelho
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