Além do Cidadão Kane

domingo, 28 de dezembro de 2008

«Sapatos» da contestação

Inicia-se no próximo dia 31 o julgamento do jornalista que insultou George W. Bush durante uma conferência de imprensa em Bagdad. Contrariamente às autoridades iraquianas, para os povos al-Zaidi é um herói e os sapatos um símbolo de resistência à ocupação.

O anúncio do início do processo foi feito, segunda-feira, por fonte oficial, a qual explicou ainda que Muntazer al-Zaidi será julgado pelo Tribunal Criminal Central do Iraque, órgão encarregado de apreciar os atentados terroristas. Esta decisão foi tomada apesar da defesa ter pedido a transferência do caso para um tribunal comum. Muntazer al-Zaidi, acusado de agressão a um chefe de Estado estrangeiro durante uma visita oficial, enfrenta uma pena que pode ir de cinco a 15 anos de prisão por violação do artigo 223 do código penal iraquiano.
A notícia do início do julgamento surgiu depois do advogado de al-Zaidi ter informado que o repórter vai processar a segurança do presidente iraquiano por agressão. De acordo com o seu irmão, al-Zaidi tem várias costelas partidas, uma mão fraturada, e diversos hematomas num dos olhos e no corpo, resultantes das agressões a que teria sido sujeito durante e após a detenção na «zona verde» de Bagdad.

Solidariedade crescente

O gesto contra Bush tornou Zaidi reconhecido mundialmente, mas segundo a televisão al-Jazeera, o iraquiano era já conhecido das autoridades de Bagdad pela sua militância política. O jovem de 29 anos, garante a estação do Qatar, é membro do Partido Comunista do Iraque e teria pertencido à União dos Estudantes Iraquianos, uma das organizações ligadas aos comunistas locais.
A filiação de Zaidi não é, no entanto, obstáculo para que no mundo árabe cresça a onda de solidariedade para com o jornalista, movimento que, para além de exigir a sua libertação, reclama o fim da ocupação norte-americana do Iraque e faz dos sapatos objetos simbólicos de protesto.
Aos mais de 200 advogados dispostos a defender gratuitamente Muntazer al-Zaidi, juntam-se milhares de iraquianos nas ruas das principais cidades. De sapatos na mão, em Bagdad, no campos universitário e nos bairros da capital, em Fallujah, em Diyala ou em Baquba as manifestações sucedem-se.
Fora do Iraque, também ecoam os protestos. No Líbano e na Palestina realizaram-se concentrações de apoio e solidariedade. Em Bilin e Nilin, na Cisjordânia, o habitual protesto semanal contra o Muro do Apartheid construído por Israel separando o território, revestiu-se a semana passada de uma dinâmica inovadora. No lugar das pedras, os palestinianos atiraram sapatos aos soldados ocupantes.
Já em Washington, a organização anti-guerra Code Pink promoveu uma concentração de apoio a Muntazer al-Zaidi e de repúdio a Bush, que acusam de «crimes de guerra» e, por isso, pretendem que seja julgado. Também na capital norte-americana, familiares e amigos de soldados mortos no Iraque empilham sapatos frente à Casa Branca.
Ainda no Médio Oriente, o Festival de Cinema do Dubai fica marcado este ano pela dedicatória da vencedora do prémio para o melhor argumento. «Dedico este prémio ao jornalista que atirou os sapatos a Bush», disse a realizadora palestiniana Annemarie Jacir, presente no certame com o filme «Sal deste Mar».

Efeito dominó

A par dos protestos, o efeito dominó provocado pelo gesto de al-Zaidi alarga-se, dos negócios ao entretenimento. Na Internet surgiram vários jogos que permitem atirar sapatos a Bush. Quanto aos negócios, a coisa parece bem mais séria, sobretudo para o fabricante dos sapatos de al-Zaidi.
O turco Ramazan Baydan, proprietário da Baydan Shoes Company diz já ter recebido mais de 300 mil encomendas do modelo mais famoso do mundo, de sua autoria, adianta, e agora rebatizado de «sapato de Bush».
Em declarações recolhidas pela imprensa turca, Baydan disse sentir-se orgulhoso por o modelo se ter «convertido num símbolo de democracia para o povo do Iraque».

Golpe falhado

Entretanto, no Iraque, a aproximação das eleições provinciais de Janeiro avolumam as tensões no seio do poder. No final da semana passada, pelo menos meia centena de funcionários do Ministério do Interior, entre os quais altas patentes do exército, desde tenentes a brigadeiros, foram detidos alegadamente por tentativa de golpe de Estado com o intuito de derrubar o governo.
O executivo de Nuri al-Maliki acusa os revoltosos de pertencerem ao Al-Awda (Regresso), grupo descendente do ilegalizado Partido Baas. Se o objetivo era de fato provocar a substituição do governo, ninguém o admite abertamente. O que já foi confirmado é que os insurrectos pretendem quebrar a ostracização a que foram levados desde 2003. No início deste ano, o parlamento de Bagdad votou uma lei que permite aos antigos membros do Baas regressar aos cargos públicos e ao funcionalismo estatal, mas os militantes e dirigentes da antiga formação política dominante no país parecem não se conformar com a falta de liberdade de ação e intervenção política.
Original em Avante

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