Além do Cidadão Kane

domingo, 18 de janeiro de 2009

Haiti e o roteiro da escravidão

• Um acordo da Unesco propôs aos ministros da Cultura comemomorarem em 2 de agosto a abolição da escravidão • Instaram a França e a comunidade internacional a recordarem a data neste 2009 cheio de aniversários significativos
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Gabriel Molina
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• APÓS 205 anos da emancipação do Haiti, urge reivindicar o país que, em 1º de janeiro de 1804, abriu a alvorada da libertação na Nossa América.
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O libertador Toussaint Louverture é símbolo dessa abolição e também do auge e ocaso da Revolução Francesa, inspiradora do povo de Santo Domingo, convertido no Haiti com a revolta dos escravos, mas traída por Napoleão Bonaparte, como o fez com os princípios que, em 14 de julho de 2009, completarão 220 anos.
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Karfa Diallo e Patrick Serres, presidente e secretário-geral da Associação Diver Cités, criada na França há dez anos com o fim de desentranhar a amnésia sobre a colonização e o roteiro da escravidão, propuseram que Bordéus reconhecesse que sua riqueza foi obtida mormente pelo tráfico de escravos africanos, apesar da Revolução Francesa. A lembrança do heroi haitiano, filho de um escravo de Daomé, hoje Benim, que chefiou a primeira e única revolta triunfante de escravos da história contemporânea, e que foi a segunda derrota do colonialismo na América Latina, perdura na sua cela-recâmara do forte de Joux, a leste da França, nos morros de Lorena, região de Franche Comté.
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Louverture, apesar de ser escravo, aprendeu a ler e a escrever. De boleeiro como ocupação, converteu-se em tão bom ginete que o chamavam do "Centauro da Savana ". Em 1791, juntou-se à revolta, quando contava com 48 anos de idade, e foi escolhido para negociar infrutuosamente com os proprietários, que ganhavam espaço. Toussaint pactou então com os espanhóis, que, aliados aos ingleses, controlavam parte da ilha na costa leste, e ganhou a patente de general. Em 29 de agosto de 1793, diante dos indícios de uma invasão inglesa, a Assembleia francesa proclamou em Paris a abolição da escravidão e declarou que "os escravos negros, a partir desse momento, seriam livres, sob a condição de participarem da causa". Louverture rompeu relações com a Espanha e passou-se para o lado francês com 4 mil de seus homens, derrotando os espanhóis em dois anos. Vencer os 60 mil invasores britânicos demorou mais três. Segundo os cronistas, ele encontrou um aliado nos Estados Unidos de Alexander Hamilton. Assim, conseguiu estimular a produção agrícola e iniciou o comércio com a jovem república americana. Reduziu o expediente a 9 horas, pela primeira vez na história, e deu o direito aos trabalhadores de ficarem com a quarta parte dos lucros. Mas Jefferson ganhou as eleições de 1800 e ao subir à presidência em 4 de março de 1801, sendo ele mesmo escravagista, virou contra Toussaint e informou Talleyrand de que podia abastecer a França do que precisasse para reconquistar o Haiti. Após o fim da guerra com a Inglaterra, Napoleão conseguiu contar com as duas forças anglo-saxônias para invadir a Ilha caribenha.
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A RESTAURAÇãO da escravidão
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O imperador armou uma enorme frota em 1802 para invadir o Haiti, sob o comando do general Victor Emmanuel LeClerc, esposo da sua irmã Paulina. O plano era desarmar os haitianos, deportar Toussaint e restaurar a escravidão. O general negro foi convidado para chegar a um acordo num dos navios, mas foi preso e enviado ao forte de Joux. Logo foi achado morto, "sentado, com a testa encostada ao muro da chaminé, em 7 de abril de 1803".
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Diallo, de origem senagalesa, considerou que a revolta dos escravos em Santo Domingo fez com que o sistema deixasse de funcionar e motivou o assanhamento de Bonaparte. "Alguns acreditam que Napoleão atuava instigado pela esposa, Josefina, filha de uma rica família, dona de plantações na Martinica, os Taschers de la Pagerie", acrescentou. Na verdade, atuava assim por motivos econômicos: as pressões dos colonialistas influentes, entre eles, os de Bordéus.
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O tráfico e a escravidão não foram abolidos definitivamente até 1848. "Mas, mesmo assim, não se conseguiu pôr termo ao sistema", afirma Karfa Diallo.
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Patrick Serres ilustrou o fato relatando que nos fins do século 18, apesar de o Estado francês ter proibido a construção de navios para o tráfico de escravos, esta bela cidade continuou armando navios com esse fim. A pesquisadora Danielle Petrissans-Cavalles "mostrou como os vestígios desse período ainda existem aqui, nos nomes das ruas dos nossos dias".
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"Foi uma verdadeira amnésia voluntária, pois sua riqueza e a beleza de suas construções são atribuídas à produção de vinhos e ao comércio com as colônias. Mas, esquece-se propositadamente que uma parte dessa riqueza foi também obtida por meio do tráfico de negros.
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Diallo acrescentou que, quando começaram a chegar os primeiros escravos a Bordéus, as autoridades, a princípio, se opuseram. Mas, depois, concederam os ágios que o Estado francês havia destinado aos armadores para desenvolver o chamado comércio com os países da América. Esses subsídios para financiar um verdadeiro genocídio continuaram ainda depois do primeiro pronunciamento da Revolução Francesa contra a escravidão na Declaração dos Direitos do Homem, pois o armadores bordeleses de navios, que já tinham poderosas plantações nas Antilhas, se deslocaram para a Convenção de Paris, e convenceram a Assembleia de que, como a escravidão era mais do que uma empresa colonial, a igualdade proclamada em 1789 era para os homens da metrópole, mas não para os das colônias. Essa rivalidade funcionou também em Cuba.
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"Naquela época, apenas se conhecia os negros. Saber que haviam criado um Estado e desmantelado um sistema, depois de uma guerra feroz, era algo extraordinário".
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No entanto, Bonaparte e os reis da época tiveram uma reação muito forte, pois Santo Domingo era o laboratório da colonização na América. Era cobiçada pela Espanha e Inglaterra por suas produções de açúcar, café, algodão, cacau, fumo e outros, apoiados em sistemas de irrigação eficazes. A riqueza das mais de 2 mil fazendas era fruto da brutal exploração de meio milhão de escravos africanos, justificada com a falácia de que não eram seres humanos, mas bestas. Os africanos eram obrigados a trabalhar diariamente mais de 12 horas sob o causticante sol tropical que, como disse o poeta nacional, queima tudo ali e aqui, e caíam rendidos.
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As escravas eram frequentemente estupradas e, com o decurso dos anos, surgiu uma camada de mestiços, maioria deles, submetida de diversas maneiras. Recebiam chicotadas ou lhes colocavam máscaras de latão no rosto pelas mais insignificantes infrações. Outras eram punidas com a mutilação de membros e até dos genitais. Por isso, a revolta foi muito sangrenta.
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"O Haiti conseguiu vencer, graças à habilidade política e militar de Louverture, mas ficou cercada; foi abandonada", salientou Diallo. Depois, a França obrigou o Haiti a pagar 10 milhões em ouro para reconhecer sua independência, um montante enorme e incalculável para os parâmetros atuais, dessangrando-o completamente. Fizeram-no entrar num sistema de corrupção.".
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Diallo enfatizou a necessidade de pesquisar mais a colonização. Existem territórios ricos e deveriam ser prósperos, mas sofreram vários séculos de dominação e exploração. "A afirmação de que a África foi vítima dos africanos é apenas uma desculpa, apesar dalguns reis das costas terem participado da captura no interior. Quando eles chegavam, davam-lhes álcool, roupa, armas, que eles necessitavam para lutar contra os adversários.
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"Acho que na África falta um trabalho de investigação e resgate da memória histórica. Eu estudei no Senegal, onde traficavam os navios negreiros na Ilha de Gorée. É preciso que os estudantes saibam tudo que há por trás dela, que é a história da colonização. É preciso, inclusive, para exigir a reparação. Os africanos não a exigem, mas é necessária, pode-se e deve-se reparar o Haiti, mudar a política internacional sobre o Haiti.
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Diver Cités exortou a Europa e a América a participarem da reparação. Por exemplo, a educação prioritária para os bairros, os territórios mais atrasados, mas necessitados. Nos Estados Unidos, falaram nisso ao presidente Bush, mas ele se recusou a reconhecer que existe uma dívida com a África e os afro-americanos. De qualquer jeito, Diallo considerou que hoje estão ali e têm a possibilidade de passar à Ação Afirmativa, embora os problemas não sejam os mesmos em toda parte. Devemos fazer alguma coisa para instar as pessoas a saberem a verdade do colonialismo e da escravidão.
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"Todo mundo concordou na construção aqui de um monumento de recordação, a decisão foi unânime, especialmente a Universidade de Bordéus, e a prefeitura criou uma comissão que a aprovou".
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Mas, quando foi inaugurado no porto Colbert, na Praça da Bolsa, o monumento, deparamos com uma modesta lápide difícil de localizar. A primeira busca do jornal Granma foi infrutífera.
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"Um acordo da Unesco convocou comemorar em 2 de agosto o Dia da Abolição da Escravidão e propôs aos ministros da Cultura de todos os países recordarem esta data. Seria uma boa sugestão para o presidente Obama. Aos poucos, chegaremos a sensibilizar o mundo, cada governo".
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"Diver Cités tem o mesmo som que diversité", agora propugnada pelo presidente Sarkozy. Há cinco anos, a França reconheceu que se cometeu um crime de lesa humanidade. Agora, junto aos Estados Unidos, a Grã-Bretaña, a Espanha, junto a todos os que se enriqueceram com a escravidão, junto à comunidade internacional em geral, deveriam atuar consequentemente, sobretudo, no Haiti, que foi reduzido da mais rica colônia à mais miserável. "Para resolver o problema do mundo negro, devemos começar pelo Haiti", disse com razão Diallo.•
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Original em Granma
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