Além do Cidadão Kane

terça-feira, 27 de janeiro de 2009

Juízes defendem nova interpretação da Anistia

Documento aprovado no V Fórum Mundial de Juízes defende uma nova interpretação da Lei de Anistia para que "se apurem efetivamente os crimes contra a humanidade, perpetrados pelos agentes do Estado durante o período da Ditadura Militar”. O que quer dizer a “interpretação técnico-jurídica” da Lei de Anistia brasileira?

Edson Teles

Encerrou-se ontem, dia 25 de janeiro, o V Fórum Mundial de Juízes. O evento, que contou com a participação de juízes, advogados e procuradores de vários países, aprovou a “Carta de Belém”, contendo a proposta de uma nova interpretação “técnico-jurídica” da Lei de Anistia. O texto aprovado defende “que se apurem efetivamente os crimes contra a humanidade, perpetrados pelos agentes do Estado durante o período da Ditadura Militar”.
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Estiveram presentes, entre outros, o juiz chileno Juan Guzmán, um dos responsáveis pelas apurações dos crimes cometidos durante o regime ditatorial de Pinochet; o juiz italiano Giancarlo Capaldo, que tem denunciado militares e agentes policiais de ditaduras latino-americanas envolvidos em mortes de cidadãos italianos; Eugênia Fávero e Marlon Weichert, procuradores da República que têm denunciado e proposto processos contra torturadores da ditadura brasileira.
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Entretanto, o que quer dizer a “interpretação técnico-jurídica” da Lei de Anistia brasileira? Para entendermos a questão é necessário refazermos brevemente o percurso histórico do surgimento desta lei.
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Em agosto de 1979, o Congresso Nacional brasileiro, ainda sob a vigência do regime de exceção, aprovou a Lei de Anistia “a todos quantos, no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexos com estes”. Na época, após 15 anos de ditadura no país, os militares cederam às pressões da opinião pública e dos movimentos de direitos humanos, especialmente dos familiares de presos e desaparecidos políticos, e enviaram projeto de lei ao Congresso Nacional. A oposição pressionou por mudanças no texto original e, por fim, aceitou a anistia proposta pelo governo.
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Apesar da luta dos comitês brasileiros pela anistia por uma “anistia ampla, geral e irrestrita” para os perseguidos pela ditadura, parte dos presos e perseguidos políticos não foi contemplada. A anistia não beneficiou os presos políticos envolvidos em crimes de sangue, como se diz em seu parágrafo 2º, do artigo 1º: “os que foram condenados pela prática de crimes de terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal”.
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Sob a decisão de anistiar os crimes “conexos” aos crimes políticos se consideraram anistiados os agentes da repressão. Os mortos e desaparecidos políticos não foram considerados e o paradeiro de seus restos mortais nunca foi esclarecido. Era o marco da transição da ditadura para o Estado de Direito, visando superar – e mais do que isso, silenciar e esquecer, o que limita ou elimina a superação – o drama vivido diante da violência estatal.
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Contudo, as leis de anistias surgem em momentos de saída de graves conflitos, com o objetivo de permitir que os perseguidos do momento sejam incluídos no processo de reconciliação. Dessa forma, não teriam sido anistiados os torturadores que cometeram crimes sem relação com causas políticas e recebendo salário como funcionários do Estado. Além disso, como já dito na lei, os chamados “crimes de sangue” não foram contemplados. Dentre estes crimes estão os atos de tortura e desaparecimento dos opositores.
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Durante a transição política para a nova democracia a anistia foi simbolizada como um ato de perdão para os dois lados envolvidos no conflito. Esta interpretação esteve vinculada ao momento político vivido pelo país, que não sofreu uma ruptura entre os dois regimes, mas antes teve seu processo promovido desde o fim dos anos 70 pelos militares – a chamada “abertura lenta e gradual”, controlando as mudanças e impedindo uma maior participação popular e dos movimentos sociais. A transição foi acordada entre o governo autoritário e os novos partidos políticos surgidos no início dos anos 80 e culminou com a eleição no Colégio Eleitoral do primeiro presidente civil após os governos militares (Tancredo Neves).
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Nos anos 90 foram criadas as leis de reparação das vítimas e de reconhecimento da responsabilidade coletiva do Estado na morte e desaparecimento de opositores. Tais leis apresentaram limites a qualquer tentativa de apuração dos crimes e punição dos responsáveis. Além disto, nas leis brasileiras de reparação, estaduais e nacional, o ônus da prova dos sofrimentos ficou a cargo das vítimas, ainda que fosse o Estado o responsável pelos arquivos e informações da repressão, elementos comprobatórios da ação institucional. Além de a vítima ter sido obrigada a provar sua própria condição, a democracia brasileira não criou uma esfera institucional para o testemunho daquela experiência, seja na esfera pública e política, seja em processos judiciais. De modo distinto à boa parte das novas democracias latino-americanas, não houve, no Brasil, um único processo penal contra criminosos da ditadura.
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Recentemente, iniciativas jurídicas pedindo a responsabilização individual dos torturadores esbarraram na interpretação – elaborada nos anos 80 – de que a anistia foi para os dois lados. Tais ações judiciais estão sendo encaminhadas pelo judiciário brasileiro para o Supremo Tribunal Federal. Nesta instância, o presidente do Supremo, Gilmar Mendes, já adiantou sua posição de que uma nova interpretação da lei implicaria em prejuízo para as instituições democráticas. Ora, não seria prejudicial justamente o ato de empurrar a justiça para debaixo do tapete, juntamente com toda a sujeira dos aparelhos de repressão da ditadura?
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A importância da apuração da violência política encontra-se na compreensão de que tais eventos não são traumas restritos ao passado, mas fatos produtores de valores que resultam em responsabilidade e compromisso, como uma promessa para o futuro. E isto apenas seria possível se o passado fosse tomado como herança da dimensão pública, gerando conceitos, reflexões e valores para uma vida em democracia.
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Assim como não é possível pensarmos a violência da ditadura, sem assumirmos o compromisso de responder aos atos de violência e tortura dos dias atuais. Não eliminaremos as “balas perdidas” se não apurarmos a verdade dos anos de chumbo e, assim, ultrapassarmos certa cultura da impunidade vigente no país. Afinal, a “bala perdida” é, tal qual o silêncio sobre os crimes da ditadura, o ato sem assinatura, pelo qual ninguém se responsabiliza.
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Professor de Ética e Direitos Humanos do curso de Pós-Graduação da Universidade Bandeirante de São Paulo e doutor em filosofia política pela Universidade de São Paulo. Email: edsonteles@gmail.com.
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Original em Carta Maior
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