Além do Cidadão Kane

sábado, 31 de maio de 2008

Fazendo os pobres passar fome


Noam Chomsky
Khaleej Times

O caos resultante da chamada ordem internacional pode ser doloroso, caso você se encontre na extremidade receptora do poder que determina a estrutura dessa ordem. Até as tortillas estão em jogo, no mesquinho esquema das coisas.

Recentemente, em muitas regiões do México, os preços das tortillas subiram mais de 50 por cento. Em Janeiro, na Cidade do México, dezenas de milhares de trabalhadores e agricultores reuniram­‑se no Zocalo, a praça central da cidade, para protestar contra o aumento vertiginoso das tortillas.

Em resposta, o governo do Presidente Felipe Calderón fez um acordo com produtores e retalhistas mexicanos para limitar o preço das tortillas e da farinha de milho, muito provavelmente um expediente temporário.

Em parte, a ameaça de escalada dos preços dos suprimentos alimentares para os trabalhadores mexicanos e para os pobres em geral é o que poderíamos chamar de efeito etanol – uma consequência da corrida dos EUA em direcção ao etanol proveniente do milho como substituto energético para o petróleo, cujas maiores fontes, evidentemente, se encontram em regiões que desafiam ainda mais contundentemente a ordem internacional.

Nos Estados Unidos, também, o efeito etanol fez aumentar os preços dos alimentos de forma ampla, incluindo outras safras, gado e aves.

A conexão entre a instabilidade no Médio Oriente e o custo de alimentar uma família nas Américas não é directo, é claro. Mas como para todo o comércio internacional, o poder faz pender a balança. Um dos principais objetivos da política externa dos EUA tem sido criar uma ordem global na qual as corporações dos EUA têm livre acesso aos mercados, recursos e oportunidades de investimento. O objectivo é habitualmente chamado “livre comércio”, uma postura que se desmorona rapidamente quando examinada.

Não é diferente do que a Grã-Bretanha, predecessora na dominação mundial, imaginou durante a parte final do século XIX, quando adoptou o livre comércio, depois de 150 anos de intervenção estatal e violência terem ajudado a nação a alcançar um poder industrial muito maior que o de qualquer rival.

Os Estados Unidos seguiram praticamente o mesmo padrão. Geralmente, as grandes potências dispõem­‑se a ingressar num certo grau limitado de livre comércio quando estão convencidas de que os interesses económicos sob sua protecção sairão beneficiados. Isso tem sido, e permanece, uma característica primária da ordem internacional.

O boom do etanol encaixa no padrão. Como discutido pelos economistas agrícolas C. Ford Runge e Benjamin Senauer na edição actual da revista Foreign Affairs, «a indústria do biocombustível tem sido há muito dominada não pelas forças de mercado, mas pelas políticas e interesses de um punhado de grandes companhias», em grande parte a Archer Daniels Midland, a maior produtora de etanol. A produção de etanol é factível graças a substanciais subsídios estatais e a altíssimas tarifas para excluir o etanol brasileiro derivado da cana-de-açúcar, muito mais barato e eficiente.

Em Março, durante a viagem do Presidente Bush à América Latina, um dos resultados alardeados foi um acordo com o Brasil para a produção conjunta de etanol. Mas Bush, embora apregoando do modo convencional a retórica do livre comércio para os outros, enfatizou veementemente que as altas tarifas que protegem os produtores dos EUA permaneceriam, naturalmente junto com as muitas formas de subsídios governamentais ao sector.

Apesar dos imensos subsídios agrícolas pagos pelos contribuintes, os preços do milho – e das tortillas – têm subido rapidamente. Um factor é que os usuários industriais do milho importado dos EUA compram, cada vez mais, variedades de milho mexicano mais baratas utilizadas para as tortillas, aumentando os preços.

O acordo do NAFTA [Tratado de Livre Comércio da América do Norte] de 1994, patrocinado pelos EUA, pode também desempenhar um papel significativo, e que tende a aumentar. Um dos impactos dos desníveis no campo de jogo do NAFTA foi inundar o México com exportações do agronegócio altamente subsidiadas, tirando de cena os produtores mexicanos.

O economista mexicano Carlos Salas analisa os dados que revelam que depois de um aumento constante até 1993, a taxa de emprego agrícola começou a declinar quando o NAFTA entrou em vigor, principalmente entre os produtores de milho — uma consequência directa do NAFTA, conclusão a que chegaram tanto ele quanto outros economistas. Um sexto da força de trabalho agrícola do México foi deslocada durante esses anos de NAFTA, um processo que prossegue, deprimindo os salários em outros sectores da economia e forçando a emigração para os Estados Unidos. Max Correa, secretário­‑geral da organização Central Campesina Cardenista, estima que «para cada cinco toneladas compradas a produtores estrangeiros, um camponês torna­‑se candidato à migração».

Provavelmente, é mais que uma mera coincidência a militarização da fronteira com o México, previamente bastante aberta, implementada em 1994 pelo Presidente Clinton, juntamente com a implementação do NAFTA.

O regime de “livre comércio” leva o México da auto-suficiência alimentar à dependência das exportações dos EUA. E, enquanto aumenta o preço do milho nos Estados Unidos, estimulado pelo poder das corporações e pela intervenção do estado, pode-se antecipar que o preço das matérias-primas pode prosseguir a sua subida acentuada no México.

É cada vez mais provável que os biocombustíveis vão «matar os pobres de fome» em todo o mundo, segundo Runge e Senauer, à medida que as matérias-primas são convertidas para a produção de etanol para os privilegiados — a mandioca, na África sub-sahariana, tomando um exemplo ominoso. Enquanto isso, no Sudeste Asiático, as florestas tropicais são destruídas e queimadas para dar lugar a dendezeiros destinados ao biocombustível, e há efeitos ambientais ameaçadores resultantes da produção intensiva de etanol derivado do milho nos Estados Unidos também.

O alto preço das tortillas e de outros alimentos, cruéis caprichos da ordem internacional, ilustram a interconexão entre os eventos, do Médio Oriente ao Meio-Oeste, e a urgência de se estabelecer um comércio baseado em acordos verdadeiramente democráticos entre os povos, e não em interesses cuja preocupação principal é de lucros para os interesses corporativos protegidos e subsidiados pelo estado que eles amplamente dominam, qualquer que seja o custo humano.

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