O ministro Ayres de Britto forneceu ao público mais alguns exemplos de sua afamada escola jurídica, segundo a qual “o Judiciário não governa, mas ele governa quem governa”, agora revista e ampliada para “o Judiciário não governa nem legisla, mas o Ayres de Britto quer governar o governo e legislar o Legislativo”. Pode não haver nisso muita lógica nem fazer muito sentido, se é que faz algum, mas é esse o conteúdo de sua entrevista à “Folha de S. Paulo”, na véspera de assumir a presidência do Tribunal Superior Eleitoral.
Diz o ministro que é contra a reeleição do presidente porque “a república é uma forma de governo contraposta da monarquia”. Não pense o leitor que o Conselheiro Acácio ressuscitou e emigrou para o Brasil. Não. Tem mais: “enquanto a monarquia é hereditária, a república é eletiva”. Essa nem o Pedro Bó é capaz de discordar. O interessante é a conclusão que o douto ministro extrai dessas duas obviedades: “... se você possibilita a renovação de mandatos, você golpeia a república nesse seu elemento da renovação dos quadros dirigentes. Quanto mais você prorroga um mandato, mais se aproxima da monarquia e se distancia da república”.
Que nos perdoe o ilustre ministro, mas a isso chama-se, em uma palavra, charlatanice. Desde quando uma reeleição é uma “prorrogação” de mandato? E desde quando o que afasta a república da monarquia é a proibição da reeleição, se na monarquia nem eleição existe para chefe de Estado?
O princípio básico da república é que o povo deve escolher o chefe de Estado. Porém, segundo o ministro Ayres de Britto, impedir o povo de escolher quem ele quiser – inclusive reeleger quem ele acha que merece – é o que caracteriza a república, e não a monarquia. Evidentemente, do ponto de vista do conteúdo político – a restrição à vontade popular –, que é o que importa, a proibição à reeleição está mais próxima da monarquia do que a liberdade republicana do eleitor eleger e reeleger quem ele quiser. No entanto, nesse samba do jurista doido, há ainda o emprego caviloso da palavra “renovação” - ele é contra a “renovação de mandatos” porque é a favor da “renovação dos quadros dirigentes”. Como o personagem de “O Leopardo”, o ministro parece ser a favor de que tudo mude para que tudo continue a mesma coisa. Pois a renovação da cara do presidente não tem relação necessária com a renovação do país. Aliás, frequentemente substitui-se um presidente por outro para que não haja renovação alguma.
Por outro lado, uma reeleição muitas vezes é a garantia de que a renovação prosseguirá - como foram, por exemplo, as três reeleições de Franklin Delano Roosevelt. O que veio nos EUA depois que a direita impôs a limitação da reeleição a um mandato é suficiente para que não haja muita dúvida a esse respeito. Porém, há exemplo mais próximo - basta imaginar o que aconteceria se Lula não pudesse ser reeleito em 2006.
Ninguém precisa pensar muito para chegar a essas conclusões. Entretanto, Ayres está mais preocupado em chaleirar a mídia reacionária, mais precisamente, golpista. Por essa razão, se diz favorável ao “voto facultativo” - quando sua missão é zelar pelo voto obrigatório, que está na lei. Refere-se, também, à discussão do “tema da vida pregressa de um candidato sob suspeita”, assunto totalmente ilegal, pois não há quem esteja acima de qualquer suspeita, e, se bastar a difamação da mídia para impugnar uma candidatura, o Reichstag de Hitler vai parecer democrático. E, diz também que “é necessário que o TSE debata sobre programas como o PAC em ano eleitoral”. Debater o quê? O governo não pode governar em ano eleitoral? Todos esses pontos são apenas o programa do golpismo, no parlamento e na mídia. Fora a laia dos Civita e Artur Virgílio, não há “discussão” sobre esses estrupícios.
Mas não é um acaso essa abastardada menção à monarquia. Ayres parece se achar um monarca absoluto em questões políticas - que não dizem respeito a um ministro do STF, muito menos ao presidente do TSE. Vejamos essa maravilha democrática: “Estamos cobrando dos candidatos fidelidade aos partidos (....). Mas o partido tem fidelidade a ele mesmo? Pode ter um programa belíssimo e uma prática feiíssima? (....) como admitir partidos com as oligarquias partidárias? Que sepulcro caiado é esse, que por fora está pintadinho, mas por dentro é uma putrefação só?”
Se o ministro tem alguma acusação a um partido que cometeu ilegalidades, tem todo o direito de fazê-la. Mas não tem o direito de falar, sem prova alguma, que os partidos – em geral – não são fiéis a si mesmos (matéria puramente política, que, portanto, não é atribuição do TSE), que têm “prática feíssima” (juízo estético que também não cabe ao TSE), de “oligarquias partidárias” (quais?) e de “putrefação”, somente porque seu colendo nariz gosta de outros cheiros.
Em suma, Ayres não pode apresentar suas opiniões políticas pessoais como se fossem doutrina jurídica. Muito menos usar seu cargo para tentar impor suas opiniões políticas aos partidos. Tais tentativas extrapolam suas funções – e têm odor, não de monarquia, mas de fascismo.
No entanto, o ministro age como se pudesse substituir o Legislativo, por exemplo, na questão do voto proporcional: “Até que ponto a lei pode (....) desconsiderar o voto do eleitor e desviar esse voto para quem não o recebeu? A lei, ao que parece, está entrando em contradição ao permitir que partidos e políticos se apropriem de votos que não lhes foram dados”.
A lei não “desconsidera” o voto do eleitor nem o “desvia” – ela considera que o voto em um candidato deve ser considerado como dado à legenda, isto é, ao partido do qual esse candidato faz parte. Ayres pode não gostar disso, apesar de ser um instrumento democrático, que reforça os partidos. Pode até, como é bastante provável, não ter entendido a essência de tal mecanismo – o que é grave para um presidente do TSE, mas não chega a ser um crime.
Até aí, problema seu. O que não é problema seu é tentar negar a lei porque acha que há “contradições” nela. Se a lei diz que o voto do eleitor tem que ser considerado na eleição do conjunto de candidatos do partido, cabe a ele aplicar a lei. E só. O resto diz respeito, exclusivamente, ao Legislativo.
No mesmo diapasão, Ayres diz que “pode-se discutir também se a legislação sobre os dois senadores suplentes é compatível com a pureza do regime democrático representativo”. Pois isso é exatamente o que um tribunal não pode discutir. Fazer a lei não é sua atribuição, muito menos do arbítrio de um juiz. Até porque, não é ele quem deve avaliar o teor de “pureza do regime democrático representativo”.
Por último, diz ele que “sou poeta antes mesmo de ser jurista. (....) decidi não deixar esse meu lado jurista passar por cima do poeta. A linguagem jurídica tradicional é muito fechada. Além de posuda. Quando permeada de literatura, ganha em clareza, beleza e, por conseguinte, fica atraente”.
Atraentíssima. Tem gente que prefere ler as sentenças do Ayres do que o Kama Sutra. E, realmente, a linguagem dele não é nada posuda...
CARLOS LOPES
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Um comentário:
!! Muito Bom !!
!! @v@nte !!
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