Por Francisco de Oliveira*
A crise que aí está é a primeira da globalização, não a primeira global, pois de há muito todas as crises produzidas no centro do sistema propagam-se imediatamente. Uma crise da globalização é diferente: ela pode ser gestada nas periferias do sistema, atingir o centro e daí propagar-se. Teoricamente, ela é uma crise clássica na interpretação marxista: é de realização do valor, mas aqui está sua novidade: a produção do valor se dá na China e sua realização nos EUA. É no que pode dar a assimetria entre os 10% de crescimento da China e os modestos 3 a 4% dos EUA.
Nos últimos vinte anos, o capitalismo mundial experimenta uma violentíssima expansão: 800 milhões de trabalhadores foram transformados em operários entre a Índia e a China, e em todos os países do vastíssimo arco asiático. Ficaram de fora nessa verdadeira revolução capitalista, a África, como sempre, e praticamente toda a América Latina.
Uma ampliação quase sem precedentes na história mundial das fronteiras da mais-valia. Descentralidade do trabalho? Vade retro! Com certeza, quem escreve e quem lê estão calçando um tênis e usando um relógio digital produzidos nessa nova fronteira. Isto quer dizer em teoria do valor que o custo de reprodução da força de trabalho nos países que importam tais bens de consumo foi drasticamente reduzido, sem a contrapartida de um aumento do salário monetário das suas classes trabalhadoras; Robert Kurz já os chamou, faz tempo, “sujeitos monetários sem dinheiro”.
Flynt (GM), Dearborn (Ford) e toda Detroit são hoje cidades fantasmas, casas abandonadas, com desempregos duas vezes superiores à taxa nacional norte-americana, e uma cena medieval diária, inimaginavel na América das oportunidades: trabalhadores em filas recebendo refeições; ao invés de Lutero e Calvino, São Francisco de Assis.
Atenção: esta revolução nos mercados de trabalho mundiais não poderia ter sido feita sem uma pesada mudança técnico-científica nos métodos e produtos. O relógio digital que se descarta é banal porque produzido por uma enorme infra-estrutura técnico-científica que tornou as imensas reservas de mão-de-obra baratíssimas. A China hoje tem mais estudantes de curso universitário que os EUA, e mais pós-graduandos que o total de estudantes universitários do Brasil.
Nos EUA isto significou que a não-contrapartida em salário monetário deixou um buraco nas contas dos consumidores e das famílias, que no boom da especulação imobiliária tinham adquirido a casa dos seus sonhos. Cujos empréstimos os norte-americanos imediatamente deixam de pagar, abandonam as casas e vão morar nos trailers de seus carrões, estacionados à noite nos parkings, onde dormem. E os bancos e financeiras hipotecárias deixaram até de cobrar, porque o crédito novo, obtido através do FED e dos empréstimos chineses, era mais barato do que cobrar dos inadimplentes.
A oferta de dinheiro barato, as subprimes, veio das aplicações chinesas em títulos do tesouro americano, cujo FED deixou os bancos privados expandirem o crédito para além de qualquer critério. Já em março de 2005, Ben Bernanke, então importante economista de Princeton, alertava para o risco da utilização dos empréstimos chineses para financiar os pesados gastos das famílias norte-americanas, em hipotecas de casas e carros. Ben é hoje o todo-poderoso presidente do FED, e de crítico converteu-se em administrador da bancarrota (citado em Mark Landler, “Somente os bolsos chineses se enchiam” Folha de S.Paulo, 5/jan/2009, artigos selecionados do The New York Times).
* Francisco de Oliveira é Professor Emérito da FFLCH-USP.
Agência Carta Maior
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