Giuseppe Cocco
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No Brasil, as vivas polêmicas suscitadas pelo caso Cesare Battisti foram e são atravessadas por dois grandes vieses. Obviamente, um deles tem origem na Itália. O outro, só um pouco menos óbvio, é fato da conjuntura política brasileira.
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Mas, há uma segunda vertente de críticas à decisão brasileira no caso Battisti: trata-se das colunas de Mino Carta, o editor-proprietário de Carta Capital, e de um magistrado, ex-chefe da repressão ao narcotráfico (sob FHC) que publica colunas no mesmo semanário. Na realidade, a atitude de Mino e Walter Maierovitch flerta com a histeria da direita anti-Lula e mancha a postura de independência editorial que Carta Capital ostentar. Há dois traços específicos nessa segunda vertente.
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Por que esse tratamento desigual, em artigo de jornalista tão bem informado? Será que Mino não sabia como resolver a incongruência dessa unanimidade entre “comunistas” e “fascistas”? O jornalista omitiu um fato que atrapalhava sua coreografia
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Grosso modo, Mino mobiliza três argumentos.
Um, geral, que diz muito sobre sua visão dos problemas do Brasil: trata-se de um país que deve firmar-se em nível internacional – ou seja, ser sério, nos termos dos palpiteiros que decidem sobre "níveis de risco".
Assim, para Mino, o que pensa The Economistconstituiria alguma espécie de Magna Carta – ou seja uma Carta Capital... decisão sobre Battisti é ruim, diz ele, também porque The Economistnão gostou. Para Mino o Brasil ainda seria uma criança que “vive em estado de ignorância”.
O segundo argumento mobiliza um método jornalístico estranho. Afirmando-se como especialista dos detalhes da vida política italiana e de sua história, Mino elogia a carta aberta enviada a Lula pelo presidente italiano – o “comunista” (diz ele) Giorgio Napolitano. Mino não chama de pós ou de ex-comunistas os membros do Partido Democrático (para onde convergiram os ex-membros do PDS (antes Partido Comunista Italiano) e os ex-membros da Democrazia Cristiana, DC). Tudo bem: até aí, nada de grave.
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Por que esse tratamento desigual, em artigo de jornalista tão bem informado? Será que Mino não sabia como resolver a incongruência dessa unanimidade entre “comunistas” e “fascistas”? O nariz de Pinocchio não cresceu. O jornalista não escreveu uma mentira.
Simplesmente omitiu o fato que atrapalhava sua coreografia. E isso depois de anunciar que, “como recomendaria Hannah Arendt, vamos à verdade factual”(sic). Ou ignorância da situação italiana, ou por ter-se atrapalhado com tantos malabarismos jornalísticos, Mino surrupia ao leitor um elemento importante: o drama da classe política italiana está justamente no fato de que comunistas e fascistas têm idêntica opinião sobre os anos 1970, sobre o Brasil de hoje e sobre várias outras coisas. Pobre Hannah Arendt, condenada à revelia a nos ensinar esse tipo de “verdade”.
Ninguém aqui pretende mobilizar Gramsci em prol de Battisti. Mas o que pensaria o filósofo sobre o apoio dos ex-comunistas italianos às guerras do Afeganistão e do Kosovo; ou sobre direita e esquerda italianas estarem hoje unidas numa furiosa discriminação dos imigrantes?
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Por que, em outro parágrafo, falar do fato de que o advogado de Battisti defende também Dantas, e não lembrar que o mesmo advogado defendeu também o MST? MST que assinou manifesto em favor de Battisti e ocupa oito páginas do mesmo número do semanário? Por que quando fala do Tortura Nunca Mais pelo avesso que haveria na Itália, não citar o detalhe de que o Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro apoiou a decisão do Ministro Tarso?
No mesmo numero do semanário, Walter começa sua coluna falando de Gramsci morto na prisão, por mãos dos fascistas. Não faz a pergunta indispensável: o que pensaria o pobre Gramsci, se visse uma situação na qual pós-comunistas e pós-fascistas andam juntinhos?
Não: ninguém aqui pretende mobilizar Gramsci em prol de Battisti. Mas haveria boa coluna a escrever, sim, sobre o que pensaria Gramsci a respeito de dois votos dos ex-comunistas italianos: a favor da guerra do Afeganistão e da guerra Kosovo. E o que pensaria ele sobre direita e esquerda italianas estarem hoje unidas numa furiosa discriminação dos imigrantes estrangeiros? E sobre a imposição das bases militares dos EUA em Vicenza, algo que a população daquela cidade rejeitou em plebiscito legal (e estamos falando de 2008!) e que direita e esquerda italianas aprovaram? E o que pensaria Gramsci sobre o ex-comunista Walter Veltroni, líder do “Partido Democratico”, que, quando prefeito de Roma, ante um fato de delinqüência sexual praticado por um grupo de imigrantes romenos, clamou por punição coletiva, étnica, para todos os “roms” (quer dizer, todos os ciganos)?
Mino e Walter falam da volta do “Febeapá do Lalau” e se pretendem conhecedores finos da realidade italiana. Walter nos explica que as leis especiais de repressão da luta armada não eram “de exceção” mas de “emergência” – sutileza equivalente ao requinte busheano de chamar a tortura praticada em Guantanamo de “novos métodos de interrogatório”. E então vem Mino e nos diz que “a Itália (...) não alterou uma única, escassa vírgula da sua Constituição para combater o terrorismo”.
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A Itália inteira sabe: a explosão de Piazza Fontana, em 1969, foi o primeiro de uma série de atentados cometidos por fascistas ou agentes de Estado ligados à Gladio (uma organização paralela à OTAN), como parte da strategia della tensione
Walter afirma-se profundo conhecedor da vida política italiana e escreve: پg[na Itália] o terror começou em dezembro de 1969 com a explosão de Piazza Fontanaپh. Não. A Itália inteira sabe que esse atentado, conhecido como strage di Stato (massacre praticado pelo Estado), está na base da chamada strategia della tensione – uma série de atentados (nos trens, em manifestação em Brescia, na estação de trens de Bologna) cometidos por fascistas ou agentes do Estado ligados a uma organização paralela da OTAN, chamada "Gladio", dirigida por Licio Gelli entre outros.
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A Itália dos anos 1960 e dos anos 1970 era assim: políticos da Democrazia Cristianamisturados com mafiosos, generais golpistas, logiasmaçônicas, bancos do Vaticano e bombas cegas destinadas a ameaçar o movimento operário e estudantil. Afirmação política que chegou à imortalidade na peça de teatro “Morte acidental de um anarquista” de Dario Fo, Pêmio Nobel literatura. É essa verdade política nossos dançarinos optaram por não revelar a seus leitores.
O primeiro ato violento (armado) da esquerda foi – em 1972 – o homicídio do Delegado Calabresi, acusado de ter defenestrado o anarquista Pinelli para acusar o movimento desse horror. O intelectual Adriano Sofri, na época dirigente do grupo "Lotta Continua" (que tinha 20 mil militantes e publicou ao longo da década um jornal quotidiano do mesmo nome), está pagando, com longos anos de prisão, uma condenação por responsabilidade moral nesse assassinato. E isso não é político? E Feltrinelli, editor, homem de esquerda e amigo pessoal de Fidel Castro, que morreu também em 1972, tentando sabotar uma torre de energia para tentar acordar os grupos de resistência contra as ameaças fascistas? Feltrinelli foi criminoso comum?
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Mino e Walter não lembram do clima daqueles anos? O golpe militar contra Allende (em 1973), o esmagamento da revolta dos estudantes gregos pelos tanques não teria tido, para eles, nenhum impacto nos movimentos de toda a Europa? Não eram pequenos grupos. Eram manifestações oceânicas, sistemáticas e repetidas, manifestações de rua que diziam: Grecia, Chile: mai piú senza fucile[Grécia, Chile, nunca mais sem fuzil]. O próprio compromisso histórico não foi, pelo menos em parte, fruto do veto norte-americano à chegada ao poder do Partido Comunista Italiano? Para não falar de Ustica: será que Mino e Walter ouviram falar de Ustica?
Se sim, como justificam que o Estado italiano tenha acobertado todos os elementos que indicavam que o avião foi derrubado por um míssil, em acidente que matou 81 pessoas? Por que a Itália nunca chamou o embaixador dos Estados Unidos, quando Washington retirou clandestinamente de território italiano os pilotos militares que derrubaram a cabine de um teleférico (“bondinho”), matando 20 italianos? Por que não se romperam relações diplomáticas com os Estados Unidos quando norte-americanos metralharam um carro do serviço secreto italiano, cujos ocupantes participavam de uma operação de libertação de uma refém em Bagdá, matando um agente italiano e ferindo a refém?
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Por que as mortes ligadas a Battisti seriam mais pesadas de todas as outras? Não é problema de justiça, ainda menos de moral. Trata-se afirmar uma razão de Estado.
A Itália quer afirmar sua razão de Estado como a única, para que ninguém ouse mais contestá-la. Mino e Walter dançam por essa música.
Chegamos assim à terceira argumentação. Mino e Walter tentam demonstrar tecnicamente que Battisti seria delinquente comum. Usando magistralmente os relatórios de polícia (que, diga-se de passagem, denominava-se na época"polícia política"; passando depois a ser designada por uma sigla, DIGOS), Mino e Walter dizem que Battisti teria sido recrutado pelas organizações armadas, depois de ter sido preso por crimes comuns.
Aí, Mino e Walter têm de se decidir, uma coisa ou outra: se na Itália daquela época não havia crimes políticos... quando ter-se-ia dado a mágica de se transformar o crime de Battisti, de crime comum em crime político? Por que os relatórios de polícia tanto se empenhariam para estabelecer o momento e a forma de sua “politização”?
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Será preciso lembrar a Constituição dos Estados Unidos que prevê o direito à revolta contra o poder constituído? Thomas Jefferson, agora, mais um perigoso terrorista?
Bem mais recentemente, em seu discurso sobre a questão do racismo, o atual presidente dos Estados Unidos, Barak Obama, não reivindicou explicitamente as lutas dos negros, inclusive das revoltas violentas? Não tentou a direita republicana usar contra ele sua relação com um antigo militante dos weathermen(movimento de guerrilha contra a guerra do Vietnam)?
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Sim, os operários italianos lutavam contra a ordem fabril e contestavam a constituição italiana “fundada sobre o trabalho” — ou seja, sobre a exploração do trabalho. Sim, os novos movimentos contestavam a sociedade disciplinar como um todo e construíram a base da abolição dos hospitais psiquiátricos, das lutas pela democratização das prisões, contra o serviço militar autoritário, pela universalização do acesso horizontal ao ensino superior, pela habitação popular e a gratuidade dos serviços. Essas lutas conquistaram o direito ao divórcio, os direitos das mulheres ao aborto e até as vitórias do Partido Comunista nas eleições municipais de 1975.
Depois, as mesmas lutas foram derrotadas pela espiral dos massacres perpetrados pelo Estado e das respostas armadas que militarizavam o movimento. A repressão desse movimento, pela qual optou a esquerda institucional (por meio do “compromisso histórico”, ou seja, a conciliação com o histórico partido de poder, a Democrazia Cristiana), não significou apenas a derrota do movimento: significou a derrota da própria esquerda.
Um ano depois da grande operação política de repressão do dia 7 de abril de 1979, a Fiat demitiu dezenas de milhares de operários e embarcou na contra-revolução neoliberal que se tornaria hegemônica mundialmente. Resultado: a esquerda institucional italiana não existe mais!
Os pobres que lutam todos os dias – renovando os princípios éticos, ou constituintes, dos direitos e do direito – entendem muito bem que, para além do graves erros políticos da década de 1970, na Itália como no mundo todo, aquele ciclo revolucionário está presente. Inclusive, e sobretudo, nos governos democráticos de América do Sul, nas dinâmicas de radicalização democrática que os atravessam. A decisão do ministro Tarso é uma dessas dinâmicas radicalmente democráticas.
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