O mais palpitante, talvez, tem a ver com o papel latino-americano do golpe e da ditadura no Brasil. Feita como parte da Guerra Fria, com ajuda da embaixada dos Estados Unidos e oferta de intervenção do Pentágono (na Operação Brother Sam), a deposição de Jango fez parte de um ciclo continental. Entre 1964 e o 11 de setembro chileno, que derrubou o governo socialista de Salvador Allende e impôs a ditadura Pinochet, em 1973, praticamente toda a América Latina se cobriu de ditaduras fardadas pró-estadunidenses (as exceções foram o México, a Venezuela, a Colômbia e a Costa Rica). A colaboração entre elas gerou a tenebrosa Operação Condor, que ainda hoje assombra o noticiário.
Já não se faz golpes latino-americanos como antes
Quem te viu e quem te vê! Hoje, quem consulta o mapa político latino-americano chega a duvidar que se trata daquele mesmo continente. Já não existe uma única ditadura militar. Mais ainda: governos progressistas – de muitas nuances e variada ousadia – passaram a predominar nitidamente nesta parte do mundo.
Mais notável ainda é a reação que essas experiências avançadas tem encontrado nos quartéis – ou, melhor dizendo, a não reação. Apenas a Venezuela registrou nos últimos anos uma tentativa golpista na mais completa acepção do termo – o 11 de abril de 2002. Mesmo esta fracassou em menos de 48 horas. E, se foi um golpe de Estado típico, com deposição e prisão do presidente Hugo Chávez, espezinhamento da Constituição e fechamento do Parlamento, não foi propriamente um golpe militar. Pelo contrário, os militares foram, depois da massa popular da periferia de Caracas, o fator decisivo para vencer os golpistas.
Mudança estratégica, histórica até
A atual geração militar, no país e no continente, via de regra não tem o vezo de seus antecessores para derrubar presidentes, impor-se às forças políticas e sociais, trucidar seus compatriotas. Em alguns lugares – o Chile é talvez o melhor exemplo – ainda dão apoio à direita, mas dentro das regras constitucionais. No Brasil, possivelmente votaram na maioria em Lula, em 2002 e 2006, embora, por espírito de corpo, muitos ainda relutem quando se trata de ajustar as contas com a história da ditadura.
Esta foi uma mudança estratégica, histórica até. Os militares (ou ao menos as correntes militares preponderantes) dos anos 60 e 70 apostaram no alinhamento com Washington, na "doutrina de segurança nacional" que lhes ensinavam na Escola das Américas, no anticomunismo. No limite, apostaram na antidemocracia, embora nem todos chegassem a teorizar, como o tirano Garrastazu Médici, que "O homem não foi feito para a democracia".
Ora, essa aposta estratégica foi derrotada. E há indícios de que tenha sido também reavaliada. Nas décadas que se seguiram, sobretudo durante a apoteose neoliberal dos anos 90, os militares do Brasil e do continente puderam constatar aonde conduziria essa opção. E tudo indica que não gostaram do que viram.
Fenômenos sociais também influíram neste sentido. A oficialidade deixou em grande medida de provir as oligarquias, passando a ser recrutada nas camadas populares – até porque a carreira militar passou a ser menosprezada pelo pensamento único neoliberal, que não já via lugar para forças armadas no Terceiro Mundo exceto a função policial do combate ao narcotráfico.
Quando se reexamina o ciclo das ditaduras com os olhos de 2008, fica mais nítido que nem sempre as forças armadas do Brasil e da América Latina foram o que foram nos anos 60 e 70. Foram também os tenentes de 1922 e 1924 no Brasil. São também o tenente-coronel Hugo Chávez na Venezuela, e o tenente-coronel Ollanta Umala no Peru.
O ciclo ditatorial não tem como se repetir
Visto de hoje, o ciclo ditatorial tristemente iniciado pelo Brasil no 1º de abril de 1964 não tem meios de se repetir – a não ser, como se sabe, como farsa. Faltariam aos fabricantes de ditaduras do Norte os comparsas nativos com que contaram na época.
Basicamente por isso o Brasil e a maior parte de seus vizinhos estão vivendo a mais prolongada, generalizada e avançada experiência democrática que já tiveram, ainda que deformada, como sempre, pela iníqua estrutura econômico-social latino-americana. Com um pouco mais de liberdade e democracia, e menos medo dos quartéis, as massas do povo têm a chance, que antes lhes era negada, de fazer a sua própria experiência. O exame dos resultados eleitorais dos últimos anos, do Rio Grande à Terra do Fogo, atesta que o aprendizado está em pleno andamento.
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