Além do Cidadão Kane

sábado, 26 de abril de 2008

A real situação da saúde pública no Brasil

Por Vasco Malleiro

Embora diariamente os meios de comunicação apresentem fatos que demonstram as precárias condições da Saúde Pública brasileira, principalmente agora com o surto de dengue que atinge a Região Leste, os órgãos ligados à medicina insistem em afirmar que o número de médicos existe é, conforme padrão da OMS, suficiente para atender a demanda. O Conselho Federal de Medicina (CFM), tomando como base o censo de 2000 e o número atualizado de médicos inscritos em cada Conselho Regional, mostra que, com apenas cinco exceções, o Brasil tem uma densidade de menos de 1000 habitantes por médico (TABELA 1).

TABELA 1


Como utilizamos os dados demográficos da estimativa do IBGE para 2005, será feita uma correção tomando a população de 2005 e os dados atualizados do CFM:

TABELA 2


Note-se que ainda os dados referentes à população estão defasados em dois anos, mas, mesmo assim pode-se perceber que o aumento populacional não é acompanhado pelo aumento proporcional do número de médicos. Por essa razão, exceto o Estado do Piauí, em todos os outros houve um aumento do índice habitantes/médico, o que leva a uma piora progressiva na oferta de atendimento médico.

Há, no entanto, uma falácia quando simplesmente tomamos a população e dividimos pelo número de médicos. Se considerarmos a totalidade dos médicos, veremos que um percentual muito grande tem especialização que não se presta ao atendimento primário em Saúde Pública, como, por exemplo, Cirurgiões, Radiologistas, Anestesistas, Neurologistas e outros. Para corrigir esse erro, agrupamos todas as especialidades afins com atendimento primário em Saúde Pública e a elas adicionamos os Médicos sem especialização alguma. Essas especialidades, bem como o número de profissionais em cada Estado e a relação habitantes/médico estão no Anexo I. Nessa análise foram considerados três grupos: Clínica, Pediatria e Ginecologia.

Várias especialidades podem e devem ser aproveitadas no atendimento primário em Saúde Pública. Por isso foi feito um levantamento, Estado por Estado, junto ao Conselho Federal de Medicina no endereço eletrônico: http://www.portalmedico.org.br/novoportal/index5.asp e agrupadas como “Clínica” as especialidades abaixo:

...........................

Ao considerar apenas os Médicos dessas especialidades e os que não possuem título de especialista e utilizando a estimativa populacional de 2005 temos a seguinte distribuição de habitantes/médico para o atendimento primário em clínica geral:


Quando aplicamos a mesma correção no que diz respeito à Pediatria, a relação “População menor de 14 anos/Pediatra. fica assim:


*A terceira coluna mostra número de óbitos de menores de 5 anos por 1.000 nascidos vivos (2004). A taxa brasileira: 26,85/1.000 nascidos vivos.
Em vermelho, taxas acima da média brasileira

Na área de Ginecologia, três especialidades foram agrupadas:

Ginecologia
Ginecologia e Obstetrícia
Obstetrícia




A terceira coluna mostra o número de óbitos maternos / 100.000 nascidos vivos em 2004. Nas Regiões Norte e Nordeste, em Minas Gerais, Mato Grosso e Goiás não existem dados nem de 2004 nem anteriores. A média brasileira dos óbitos maternos é de 76,09/100.000.
No entanto esses dados ainda não correspondem à realidade porque a distribuição, tanto dos Médicos como da População, é desproporcional se compararmos Capital e Interior. Esses dados estão detalhados no Anexo II.

CLÍNICA GERAL



PEDIATRIA

Relação “População Menor de 14 anos/Pediatra” no Interior. A terceira coluna mostra o número de óbitos de menores de 5 anos / 1,000 nascidos vivos
Média do Brasil: 26,85/1.000 nascidos vivos.

TABELA 7


Em vermelho, taxas acima da média brasileira

Note-se que quando analisamos as taxas de “óbitos de menores de 5 anos” tomando o total de Pediatras residentes no Interior e na Capital (TABELA 4) não aparece claramente a correlação entre maior número de óbitos com menor número de Pediatras. Essa correlação surge claramente quando cruzamos o número de pacientes por Pediatra no Interior. Isso parece demonstrar que o elevado número de óbitos de crianças menores de 5 anos é causado pela falta de assistência médica no Interior. Essa diminuta oferta de atendimento médico no Interior, que como veremos ocorre também em Ginecologia e Obstetrícia, é a responsável pela “ambulancioterapia” que acaba por saturar a capacidade de atendimento médico nas Capitais.

GINECOLOGIA E OBSTETRÍCIA



Embora não existam dados da mortalidade materna nos Estados do Norte e Nordeste, é fácil prever o que está ocorrendo nessas regiões.
Esses números, embora infinitamente aquém da real necessidade do país, seriam verdadeiros se TODOS os Médicos incluídos nesses grupos de especialidades estivessem efetivamente engajados no atendimento primário à Saúde Pública. Entretanto sabemos que uma grande parcela desses Médicos, sejam Clínicos ou, principalmente, Ginecologistas e Pediatras não tem qualquer interesse em fazer esse tipo de atendimento, preferindo se dedicar apenas à clínica particular – mormente aqueles estabelecidos nas Capitais.
Em relatório recentemente apresentado, o International Poverty Center, referindo-se ao impacto do Programa Bolsa Família, diz que “em saúde, os trabalhos analisados pelo Centro Internacional de Pobreza indicam que o resultado do Bolsa Família é pequeno ou inexistente. Ao contrário do que ocorre no programa mexicano, no chileno e mesmo em um programa da Colômbia (Famílias en Acción), no Brasil não foram encontradas evidências de que as famílias beneficiadas pela transferência de renda estejam cumprindo melhor o calendário de vacinação. “Uma proporção substantiva — de 23% a 25% — das crianças pobres (...) ou não visitaram as unidades de saúde ou ao fazê-lo não receberam as cadernetas [de vacinação]. Quando possuíam a caderneta, as crianças beneficiadas não apresentaram uma probabilidade maior de estarem com as vacinas em dia — ou com a caderneta atualizada”. “Isso reforça a provável existência de gargalos na oferta de serviços de saúde”. É evidente que, se isso acontece, acontece pela dificuldade de acesso aos serviços de saúde.
O “provável gargalo na oferta de serviços de saúde” que é detectado pelo International Poverty Centre, somente será resolvido com a redistribuição dos Clínicos Gerais pelo território nacional e pela formação de Pediatras e Ginecologista. Imaginando-se, ainda, que TODOS os Clínicos, Pediatras e Ginecologistas se proponham a atender Programas de Saúde Pública, teríamos que ter, para manter o proposto pela OMS: Mais 35.460 Pediatras e 71.675 Ginecologistas. O levantamento mostra que suficientes seriam apenas os Clínicos com um excedente de 8.863 profissionais. Repetimos: Se todos atenderem através de Sistema Único de Saúde.
Basta ir, em qualquer cidade brasileira, nas Capitais ou no Interior, e tentar uma consulta na Rede Pública de Saúde, e note-se que não à procura de atendimento de alta complexidade, mas uma simples consulta clínica, para se ter a dimensão da dificuldade em consegui-la. A mãe que busca atendimento para o filho, o idoso hipertenso, a gestante, enfim, qualquer um tem que ir preparado, no mínimo, com uma imensa dose de paciência para esperar. O atendimento, devido a enorme procura, é, via de regra, o mais rasteiro e rápido possível; o exame físico é uma exceção, a orientação médica outra e a simples pergunta “ o que mais você está sentindo?” praticamente inexiste. Esse último item leva o paciente a retornar inúmeras vezes ao consultório para resolver problemas que poderiam ter sido resolvidos na primeira consulta se houvesse um pouco mais de interesse e tempo por parte dos profissionais em melhorar a relação Médico / Paciente.
Esta é a real situação da Saúde Pública brasileira. Esta é a situação de um País que, segundo suas elites, não deve ter novas faculdades de medicina nem ampliar as vagas nas existentes. Este é o retrato da saúde pública de um País que impede 10.000 Médicos formados no exterior, especialmente os formados na Escola Latino-Americana de Medicina em Cuba, com o curso totalmente direcionado para o atendimento em saúde pública, de exercer a profissão no território nacional. E porque não há uma mudança neste quadro? Porque existem os interesses econômicos das Empresas de Medicina de Grupo, que em 2006 tiveram um faturamento bruto de R$ 38.624.000.000,00, segundo a Agência Nacional de Saúde (ANS) - informação no Cadernos de Saúde Complementar dos próprios Médicos que sabem que uma Saúde Pública resolutiva diminui ou até elimina a procura por consultas particulares e, finalmente, porque não interessa aos políticos profissionais, aqueles que estão sempre projetando a próxima eleição, eliminar o meio fácil de obter votos que é o de fazer favores individuais, marcando consultas nas Capitais, oferecendo exames, carregando pacientes em seus automóveis. Quando o tema SAÚDE for levado a sério, desaparecerá o “fazer um favor” e o Direito que as pessoas têm de terem promovidos o seu bem estar físico, mental e social mudará esse quadro vergonhoso que é a Saúde Pública Brasileira.
Este trabalho foi realizado no 2º semestre de 2007.
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