Além do Cidadão Kane

domingo, 23 de agosto de 2009

As Eleições Afegãs: Farsa num País ocupado

As eleições afegãs foram uma farsa. Mais de 300.000 soldados e polícias (100.000 estrangeiros) foram mobilizados para garantir aquilo a que chamaram umas «eleições limpas e democráticas». O objetivo era legitimar a ocupação do país através do voto. Mas não foi atingido. Segundo a Comissão Eleitoral, a participação terá sido 40 a 50%. Mas de acordo com as crônicas dos correspondentes de grandes jornais europeus a fraude foi gigantesca. A inscrição das mulheres nos cadernos eleitorais foi feita sem a sua presença, pelos maridos. Cartões de eleitor falsos foram vendidos pelo equivalente a 10 euros no mercado negro. Hamid Karzai, o presidente, recebeu uns 800.000 votos fictícios. O Palácio presidencial foi bombardeado na véspera das eleições e centenas de secções de voto não foram sequer instaladas. Os dois principais candidatos apressaram-se a proclamar vitória por maioria absoluta o que dispensaria uma segunda volta. Mas os resultados oficiais somente serão anunciados em meados de Setembro. Irá a Casa Branca a decidir quem será o vencedor destas eleições fraudulentas?
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Miguel Urbano Rodrigues
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As eleições presidências e locais no Afeganistão foram, como se previa, uma farsa dramática.

Mais de 300.000 soldados e polícias (100.000 da NATO e da Força «Liberdade Duradoura» exclusivamente constituída por tropas norte-americanas) foram mobilizados para garantir o caráter «democrático» do processo. Mas o espetáculo não se desenrolou de acordo com o programa.

Washington tinha manifestado a esperança de que as eleições seriam «limpas e massivas». Foram sujas e a abstenção foi enorme. Na maioria das Províncias multiplicaram-se os ataques armados a lugares estratégicos. Segundo a Comissão Eleitoral Independente (assim se chama), registraram-se uns 135 «incidentes» em 15 Províncias. Balanço provisório: 56 mortos. Alguns colégios eleitorais foram atingidos por mísseis. Nas vésperas o Palácio Presidencial foi bombardeado.

Hamid Karzai- ex funcionário de uma transnacional estadunidense apressou-se a proclamar a sua vitoria por maioria absoluta ,o que dispensaria uma segunda volta em Outubro. Mas o principal adversário, Abdullah Abdullah, também reivindicou a vitória.

A Comissão Eleitoral esclareceu que somente começará a divulgar resultados parciais a partir da próxima semana. Os oficiais, não definitivos, não antes de meados de Setembro.

Estavam aptos para votar, oficialmente, mais de 17 milhões de cidadãos. Acontece que as estatísticas no Afeganistão são fantasistas. Atribuem atualmente ao país 33 milhões de habitantes, mas há 30 anos o governo revolucionário avaliou-a em apenas 16 milhões.

A Comissão Eleitoral informou que funcionaram 95% das 6 500 secções de voto. Ninguém acreditou porque muitos dos 364 Distritos estão sob controle das guerrilhas.

Estranhamente 70% dos eleitores são do sexo feminino. O absurdo tem uma explicação. São os maridos que inscrevem as mulheres – com freqüência três ou quatro – nos cadernos eleitorais. A lei não exige que elas se apresentem no ato de inscrição. Os cartões de eleitor não têm, aliás, fotografia, pelo que o controle é impossível.

Correspondentes de jornais europeus revelaram que no mercado negro foram vendidos centenas de milhares de cartões, por um preço equivalente a seis euros. Um dos candidatos à Presidência, o milionário Ashrai Ghani, ex-ministro das Finanças, afirma que Karzai recebeu uns 800.000 votos fictícios do eleitorado feminino.

Como a esmagadora maioria da população é analfabeta, pintavam um dedo aos iletrados após a votação. A tinta utilizada era, porém, lavável o que permitiu ao mesmo cidadão votar mais de uma vez.

O número de candidatos à Presidência merece registro no Guiness: quatro dezenas!Como, simultaneamente, 3.195 cidadãos disputaram as eleições locais, candidatando-se a conselheiros municipais, a corrupção e a violência espalharam-se pelo país como lava a escorrer de um vulcão.

Os adeptos de Karzai e Abdullah envolveram-se numa guerra interna. Dezenas de candidatos foram assassinados. O diretor da campanha de Abdullah foi também abatido.

O envolvimento da Presidência num feixe de casos de corrupção (ao irmão do chefe do Executivo foi apreendida em casa uma enorme quantidade de heroína) e a apropriação pelos seus colaboradores de centenas de milhões de dólares da «ajuda internacional» levaram Karzai nos últimos meses a uma reversão de alianças. Para receber o apoio de grandes chefes tribais que durante anos havia combatido ou deportado (como o uzbeque Rachid Dostum, um genocida) comprou-lhes a consciência e os votos.

A EUFORIA E O MEDO DE HAMID KARZAI

O Presidente temia o que iria passar-se no dia 20. À cautela proibiu os meios de comunicação social de noticiar atos de violência nas vésperas e no dia das eleições. O acesso dos jornalistas às secções de voto foi também interdito e o governo esclareceu que os correspondentes estrangeiros que violassem a proibição seriam expulsos.

Logo na manhã de sexta-feira, Karzai e os seus ministros principiaram a falar de afluência maciça às urnas. Algumas mídias estrangeiras difundiram a noticia. Era falsa. As longas filas de votantes nos colégios eleitorais inexistiram.

No sábado a Comissão Eleitoral informou que avaliava a abstenção entre 45 a 50 por cento. Por outras palavras, mais de metade dos eleitores inscritos não teria votado apesar das formidáveis pressões oficiais e da atmosfera de intimidação que se respira num país ocupado. Enviados especiais das agências Reuters e Efe e de grandes jornais europeus conservadores entre os quais Le Monde, Le Fígaro e El Pais – sublinharam alias nas suas crônicas que uma gigantesca fraude retirava credibilidade aos resultados a serem divulgados.

Diplomatas ocidentais, segundo Le Monde, avaliaram em 10% a participação dos eleitores em certas regiões do Sul.

Um relatório da UNAMA, a missão de Assistência das Nações Unidas para o Afeganistão, publicado no início de Agosto, manifesta grande preocupação com o futuro do país. Em sua opinião, o clima de violência em que transcorreu a campanha, marcado por ameaças, o roubo dos fundos internacionais, assassínios e uma corrupção avassaladora desmente o otimismo daqueles que insistem em definir como «democráticas» as eleições.

Essa evidência não impediu Barack Obama de as definir como «um êxito» logo que se encerraram as urnas.

Na véspera, discursando no Arizona, o Presidente dos EUA defendeu uma vez mais a guerra no Afeganistão como uma prioridade estratégica, indispensável à segurança do povo norte-americano e salientou que a grande tarefa dos militares do seu pais consiste agora na «conquista dos corações e do espírito dos afegãos».

A situação real no país não confirma a esperança de contornos românticos de Barack Obama.O novo secretário-geral da NATO, o dinamarquês Anders Rasmunssen, manifestou também satisfação pelo clima que envolveu a jornada eleitoral assegurada pelas «forças de segurança».Na opinião dos correspondentes estrangeiros a grande maioria dos afegãos, de todas as etnias, detesta o militares estrangeiros que ocupam o país.

A popularidade de Karzai em Kabul seria muito baixa. O mesmo não acontece com a imagem dos antigos dirigentes da revolução afegã. René Girard, o enviado de Le Fígaro, informa que na capital não se vê um retrato do ex-presidente Muhamad Najibullah. Mas isso não impede – escreve – que ele seja «de longe o político mais popular da história afegã contemporânea».

INCÓGNITA: A OPÇÃO DE WASHINGTON

O objetivo principal das eleições era a legitimação pelo voto da tutela imperial imposta pelos EUA ao povo afegão.

Mas a alta percentagem da abstenção expressou a condenação da guerra e da caricatura de democracia representativa implantada sob a proteção das baionetas americanas.

Não é de estranhar que a própria imprensa dos EUA comece a questionar a estratégia de Obama para a Região.

Cabe recordar que o Presidente enviou para o Afeganistão mais 21.000 soldados e alargou os ataques aéreos às zonas tribais do Paquistão, habitadas por pachtuns, alegando que funcionam como «santuários dos talibãs».

A nomeação do general Stanley McChrystal como comandante-chefe na Região foi alias o prólogo da grande ofensiva na Província do Helmand em que participaram 4.000 marines e tropas de elite britânicas. Entretanto o próprio general – um boina verde com currículo de criminoso de guerra – reconheceu que essa ofensiva, tendente a criar condições de segurança para as eleições, não atingiu os seus objetivos. Foi um fracasso militar e político. As baixas foram muito elevadas. McChrystal abandonou a oratória triunfalista e fala agora de uma «guerra de longa duração».

A popularidade de Obama (pela primeira vez a rondar os 50%) ressente-se e a sua estratégia afegã é cada vez mais contestada.

As grandes cadeias de televisão e os diários de influência nacional, como The New York Times e o Washington Post, estão conscientes de que a eleição presidencial colocou a Casa Branca perante uma situação dilemática.

Nas últimas semanas aumentaram as criticas de altas personalidades da administração a Hamid Karzai. O presidente fantoche e corrupto tornou-se muito incômodo. Mas em Washington teme-se a situação de instabilidade que resultaria da necessidade de um segundo turno se Karzai não obtiver os 50% indispensáveis à reeleição automática.

A resposta à incógnita será conhecida quando a Comissão Eleitoral anunciar o nome do vencedor das eleições e a votação que obteve.

Observadores internacionais acreditam, entretanto, que a decisão sobre o nome do futuro presidente será tomada em Washington.

Houve tantas fraudes nestas fantasmáticas eleições que mais uma, a maior e mais grave de todas, não é improvável.

O POVO AFEGÃO SUJEITO DA HISTÓRIA

Foi em l988, há 21 anos, que estive pela ultima vez no Afeganistão.A Revolução, abandonada por Gorbatchov, lutava então para sobreviver.

As últimas tropas soviéticas retiravam-se do país e a farinha e o petróleo começavam a escassear. Mas as Forças Armadas afegãs batiam-se com bravura contra os bandos de mujahedines das Sete Organizações Sunitas de Peshawar, armadas e financiadas pelos EUA. Reagan recebia na Casa Branca como «combatentes da liberdade» os seus chefes, quase todos milionários ligados à produção e tráfico da droga e a negócios mafiosos.

Osama Ben Laden, ao tempo um desconhecido, era aliado dessa gente; a sua família mantinha relações de amizade com George Bush pai, o vice-presidente dos EUA. Os talibãs ainda não haviam sido criados pela CIA e pelos serviços secretos do Paquistão.

Nesse ano 88 as moças ainda eram mais numerosas do que os homens na Universidade de Kabul. Nos quartéis da Cordilheira, quando atravessei o Hindu Kush, falei com mulheres que lutavam pela Revolução, de fuzil a tiracolo e rosto descoberto. Havia no Governo ministras.

Guardo dessa visita e de outras anteriores recordações inapagáveis.A Revolução tinha expropriado os senhores feudais, entregado a terra e a água aos camponeses (num país onde nada verde brota da terra sem a água das neves vindas da alta montanha), havia fundado universidades, instalado fábricas, construído milhares de escolas, dignificado as mulheres.Nem uma só capital das 34 Províncias tinha sido conquistada pelos contra-revolucionários.

Não posso esquecer as vigílias passadas em Kabul falando da Revolução e dos desafios dela inseparáveis com dirigentes do Partido Democrático Popular,a organização marxista que tomara o Poder uma década antes. Recordo com saudade alguns desses companheiros, revolucionários exemplares que me ajudaram a compreender a história profunda dos povos que viviam há séculos nas montanhas, vales e desertos daquele país.

Transcorridas duas décadas, tudo isso acabou.

Em Portugal, lendo textos que jornalistas mercenários ou ignorantes escrevem sobre a eleição farsa não é sem dor que imagino a terra afegã, invadida ocupada e governada pelos EUA.

Nasceu nas minhas passagens por ali um amor que quase se tornou paixão pela história da amalgama de povos muito diferentes que somente no século XVIII passaram a ser designados por afegãos.

Escrevi sobre a sua história centenas de páginas em livros e jornais.

Ontem, ao ler o que sobre as eleições disseram o presidente Obama e o general McChrystal subiu em mim uma pergunta:

Terão eles a noção, mesmo superficial, de que o Afeganistão é hoje talvez o museu arqueológico natural mais rico da humanidade, porque ali sob a terra, inexploradas, se encontram vestígios únicos de grandes civilizações desaparecidas.

Pensei em cidades Aqueménidas da Bactria, ruínas das polis gregas fundadas pelos veteranos de Alexandre, em muralhas dos persas sassânidas, nos Budas gigantes de Bamyan levantados pelos kuchanos vindos do Oriente, em tesouros da estatuária greco-bactriana, nos palácios soterrados dos gahznividas turcos, em mesquitas deslumbrantes dos safévidas, no príncipe timurida Babur, fundador do Império do Grão Mogol, que em Kabul escreveu uma obra prima da literatura mundial.

E perguntei-me se Obama e o general McChrystal saberão que ao longo de vinte e cinco séculos incontáveis gerações de povos de origem iraniana dos quais descendem os atuais pashtuns e tajiques se bateram pelo direito a serem livres nas montanhas e vales do atual Afeganistão contra todos os invasores, desde os persas de Dario, aos americanos de Obama, passando pelos hunos heftalitas, os árabes, os mongóis de Gengis Khan, os turcos chagatai de Tamerlão, os ingleses , os russos do império czarista.

Dói-me escutar o Presidente dos EUA, um homem instruído e talvez honesto, a debitar disparates sobre a necessidade de intensificar a guerra no Afeganistão para defender a liberdade e a democracia.

Dói-me, repito, imaginar a barbárie ocidental que se abateu sobre a terra e os povos do Afeganistão que aprendi a amar.
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Original em O Diario.info

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