Além do Cidadão Kane

quinta-feira, 6 de agosto de 2009

O canetaço que valeu uma coroa

Faz 40 anos, em 22 de julho de 1969, Franco decidiu que Juan Carlos seria seu sucessor como chefe de Estado

FERRAN CASAS
Traduzido por Rosalvo Maciel
.
Era pouco mais das 19h00min de 22 de julho de 1969. Os Estados Unidos ainda celebravam sua alunissagem e naquela tarde, a 34 graus, o ditador Francisco Franco, de branco e uniforme militar de verão, chegava à Carreira de San Jerónimo. Estava disposto a encenar a resposta das Cortes ao “e depois de Franco o quê?” uma pergunta que durante uma década atormentou a um regime personalista e genocida.

A Lei de Sucessão à Chefia de Estado ia dar solução na pessoa de Juan Carlos de Bourbon, nomeado Príncipe de Espanha, ao complexo processo de designação do sucessor pelo próprio ditador. Franco pretendía perpetuar seu régime quando não mais vivesse. A ditadura não sobreviveu aos anos setenta, mas o eleito se assegurou para ele e os seus uma Coroa que ainda hoje ostenta.
Na manhã seguinte à aprovação da lei, Juan Carlos aceitaria o encargo e, "recebendo de Sua Excelência", disse "a legitimidade política surgida em 18 de julho", jurou o cargo de sucessor e os princípios do Movimento. Quarenta anos depois há quem veja em tudo aquilo uma jogada mestra do atual chefe de Estado para engambelar aos setores do regime refratários ao processo democratizador que, de forma irreversível, se abriu apos a morte de Franco. Mas também estão os que sustentam que foi a consolidação de uma seqüela do franquismo que, anos mais tarde, se blindou com uma Constituição cuja reforma no que se refere ao modelo de Estado só é comparável a um cofre de sete chaves.

Seja como for, Juan Carlos I conseguiu que os Bourbon voltassem ao trono apesar de que isso lhe custou uma disputa familiar com seu padre, Juan de Bourbon, legítimo sucessor de Alfonso XIII (deposto em 1931), a quem Franco vetava. De Juan Carlos sim pensou o ditador, e assim o afirmou nas Cortes aquele dia, que havia dado "claras mostras de lealdade aos princípios e instituições do Regime".

O agora rei aceitou ante o ditador que sua legitimidade vinha desde 18 de julho

Os historiadores consultados por Público coincidem em que sua nomeação teve a ver com as pressões de chefetes do regime como o então presidente do Governo, Luis Carrero Blanco, ou Laureano López Rodó. "Queriam garantir o franquismo sem Franco e estavam convencidos de que um príncipe que jurasse fidelidade aos princípios e leis do Movimento e atraiçoava o seu pai seria fácil de dirigir", assegura Joan B. Culla, professor de Historia da Universidade Autônoma de Barcelona.

Enrique Moradiellos, catedrático de Historia Contemporánea da Universidade de Extremadura, constata a vontade de "institucionalizar" o régime. E Julián Casanova, catedrático na Universidade de Zaragoza, exibe documentação onde, já então, Carrero se referia à "monarquia do Movimento Nacional".

O contexto não era fútil e era necessário transmitir imagem de renovação. Era o ano do escândalo Matesa, seguia o enfrentamento búnker-reformistas e a sociedade espanhola até sua particular transição social e cultural. Teria que passar alguns anos para que a política desse resposta à realidade das ruas.

Sem mostras de abertura

Casanova assinala que é difícil julgar ao príncipe de então com o prisma atual. "Não há duvida de que o de agora se parece mais ao da Transição do que ao de há 40 anos. Então não se lhe viam indícios de abertura", ressalta. De fato, recorda o catedrático, depois de 1969 ocorreram coisas graves, com penas de morte que horrorizaram ao mundo, e o agora rei calou.

Os especialistas crêem que em 1978 conservou a coroa porque não havia outra saída

Neste aspecto aprofunda mais Iñaki Errazkin, jornalista autor de Hasta la coronilla. Autopsia de los Borbones. "Foi nomeado sucessor do ditador e, antes de aprovar a Constituição, exerceu formalmente como tal. Franco delegou a ele em duas ocasiões por motivo de saúde, se pode falar dele como ditador suplente", aponta. Nisso o apóia o catedrático da Pompeu Fabra Vicenç Navarro. Para ele, Juan Carlos I nunca nomeou governos com prioridade democrática e estabeleceu "a continuidade entre aquele regime e o sistema atual". Foram as demonstrações de força na rua e a tensão social e política "as que lhe obrigaram a abrir-se".

Há acordo em que a legitimidade democrática não chegou, em todo caso, até a Constituição de 1978 que redigiram as Cortes apos as primeiras eleições democráticas. Moradiellos se recusa a "prejulgar" a uma democracia e a uma monarquia pelo como se instaura. Nesta linha, sustenta que a democracia espanhola é mais estável que a portuguesa, "que chegou após una revolução e não após uma transição".

A Constituição, tudo ou nada

Tal como Vicenç Navarro, discorda Iñaki Errazkin. Aponta que a Constituição foi enfiada goela a abaixo para salvar a monarquia. "Foi segundo ele uma operação de “legalização” e hipnotismo exemplar: ou comes a maçã com bicho ou não tem maçã". A Transição, complexa e carregada de concessões, levou o rei a conquistar "outras fontes de legitimidade", admitem historiadores como Moradiellos. O momento chave foi o 23 de fevereiro. Segundo Culla, passou de "o rei de Franco a salvador da democracia". Errazkin os completa: "Em 23 de fevereiro se tratava de consolidar ao rei já fora com o golpe ou com seu fracasso. E se conseguiu".

Em todo caso, como conclui o catedrático de Direito Constitucional Francisco Balaguer, na Transição poucos puderam "debater entre monarquia ou república; o tema era democracia ou ditadura". Ganhou o primeiro. Mas com a coroa incorporada.
.
Original em Publico.es

Nenhum comentário:

Copyleft - Nenhum Direito Reservado - O conhecimento humano pertence à Humanidade.