Além do Cidadão Kane

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Indignação com as laranjeiras

Luiz Carlos Bresser-Pereira
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Há uma semana, duas queridas amigas disseram-me da sua indignação contra os invasores de uma fazenda e a destruição de pés de laranja. Uma delas perguntou-me antes de qualquer outra palavra: "E as laranjeiras?" -como se na pergunta tudo estivesse dito.

Essa reação foi provavelmente repetida por muitos brasileiros que viram na TV aquelas cenas. Não vou defender o MST pela ação, embora esteja claro para mim que o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra é uma das únicas organizações a, de fato, defender os pobres no Brasil. Mas não vou também condená-lo ao fogo do inferno. Não aceito a transformação das laranjeiras em novos cordeiros imolados pela "fúria de militantes irracionais".

Quando ouvi o relato indignado, perguntei à amiga por que o MST havia feito aquilo. Sua resposta foi o que ouvira na TV de uma das mulheres que participara da invasão: "Para plantar feijão". Não tinha outra resposta porque o noticiário televisivo omitiu as razões: primeiro, que a fazenda é fruto de grilagem contestada pelo Incra; segundo, que, conforme a frase igualmente indignada de um dos dirigentes do MST publicada nesta Folha em 11 deste mês, "transformaram suco de laranja em seres humanos, como se nós tivéssemos destruído uma geração; o que o MST quis demonstrar foi que somos contra a monocultura".

Talvez os dois argumentos não sejam suficientes para justificar a ação, mas não devemos esquecer que a lógica dos movimentos populares implica sempre algum desrespeito à lei. Não deixa de ser surpreendente indignação tão grande contra ofensa tão pequena se a comparamos, por exemplo, com o pagamento, pelo Estado brasileiro, de bilhões de reais em juros calculados segundo taxas injustificáveis ou com a formação de cartéis para ganhar concorrências públicas ou com remunerações a funcionários públicos que nada têm a ver com o valor de seu trabalho.

Por que não nos indignarmos com o fenômeno mais amplo da captura ou privatização do patrimônio público que ocorre todos os dias no país? Uma resposta a essa pergunta seria a de que os espíritos conservadores estão preocupados em resguardar seu valor maior -o princípio da ordem-, que estaria sendo ameaçado pelo desrespeito à propriedade.

Enquanto o leitor pensa nessa questão, que talvez favoreça o MST, tenho outra pergunta igualmente incômoda, mas, desta vez, incômoda para o outro lado: por que os economistas que criticam a suposta superioridade da grande exploração agrícola e defendem a agricultura familiar com os argumentos de que ela diminui a desigualdade social, aumenta o emprego e é compatível com a eficiência na produção de um número importante de alimentos não realizam estudos que demonstrem esse fato?

A resposta a essa pergunta pode estar no Censo Agropecuário de 2006: embora ocupe apenas um quarto da área cultivada, a agricultura familiar responde por 38% do valor da produção e emprega quase três quartos da mão de obra no campo.

O ministro do Desenvolvimento Agrário, Guilherme Cassel, nesta Folha listou esses fatos e afirmou que uma "longa jornada de lutas sociais" levou o Estado brasileiro a reconhecer a importância econômica e social da agricultura familiar. Pode ser, mas ainda não entendo por que bons economistas agrícolas não demonstram esse fato com mais clareza. Essa demonstração não seria tão difícil -e talvez ajudasse minhas queridas amigas a não se indignarem tanto com as laranjeiras.
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LUIZ CARLOS BRESSER-PEREIRA , 75, professor emérito da Fundação Getulio Vargas, ex-ministro da Fazenda (governo Sarney), da Administração e Reforma do Estado (primeiro governo FHC) e da Ciência e Tecnologia (segundo governo FHC), é autor de "Macroeconomia da Estagnação: Crítica da Ortodoxia Convencional no Brasil pós-1994".
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Publicado em MST

2 comentários:

filipe disse...

Qualquer gesto de rebeldia é imediatamente execrado pelos canais comunicacionais da grande burguesia. Lembra-nos, este caso da luta dos MST, o escrito de Brecht: "Do rio que tudo arrasta se diz que é violento;Mas ninguém diz violentas asmargens que o oprimem."...Muitos e oportunos cálculos estão por fazer - e, sobretudo, divulgarmos - sobre a exploração nos campos do Brasil e o abandono de terras férteis pelos latifundiários. Por ex., que áreas totais, em cada estado, estão ilegitimamente nas mãos de grandes agrários sem produzirem? Que produtos agrícolas e em que quantidades, seria possível estarem a ser produzidos nessas terras improdutivas e qual o seu valor económico? Quantos milhões de brasileiros,durante um ano, poderiam estar a alimentar-se com essa produção, se a Reforma Agrária não estivesse remetida a quase letra morta? Para os explorados, lutar é o único caminho, certo e justo, a reclamar a nossa solidariedade.Saudações fraternas.

Glauber Ataide disse...

Olá, camaradas,

Estou passando para trazer a seu conhecimento o vídeo "Capitalismo & outras coisas de criança", de autoria do Partido Socialista da Grã-Bretanha, com tradução e legendas minhas.

É um curta extremamente didático, que tem sido utilizado em várias faculdades até nos EUA, expondo as bases da propriedade privada e da organização social no capital.

O vídeo pode ser assistido online no endereço

http://www.vimeo.com/4799723 .

Com uma qualidade superior, ele também pode ser baixado nos endereços:

http://www.4shared.com/file/105840930/ac89d715/Capitalismo__outras_coisas_de_crianasparte_1_de_4.html
http://www.4shared.com/file/105840913/7b6e42d/Capitalismo__outras_coisas_de_crianasparte_2_de_4.html
http://www.4shared.com/file/105840948/ed13c9e0/Capitalismo__outras_coisas_de_crianasparte_3_de_4.html
http://www.4shared.com/file/105840942/dc620fe/Capitalismo__outras_coisas_de_crianasparte_4_de_4.html

Hasta la victoria, siempre,
Glauber
(http://glauberataide.blogspot.com/)

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