Na recém desclassificada carta, datada de 26 de dezembro de 2003 e dirigida provavelmente à Cruz Vermelha Internacional (“a quem interessar possa”), Sadam denunciou “os espancamentos que recebi após a minha captura, na qual nem uma só parte do meu corpo ficou livre do severo dano que foi infligido pela gangue da prisão”, e acrescentou que “as marcas ainda estão visíveis no meu corpo”.
A denúncia não é propriamente nova – havia sido feita pessoalmente por Sadam diante do tribunal da ocupação – e, em outras três ou quatro vezes, pelo menos, por meio de seus advogados, uma delas reproduzida na revista “Newsweek”. Mas, em geral, a mídia imperial sempre tentou abafar o fato, admitindo, mal e mal, como vítimas da extensa tortura praticada pelo regime de W. Bush, que a elevou a política oficial de Estado, os presos de Guantánamo, de Abu Graib, de Bagram e das prisões secretas da CIA - supostos insurgentes, terroristas ou “inimigos combatentes”. Agora, não há como esconder, torturaram o chefe de Estado do país que invadiram para assaltar o petróleo. Cada um com seu destino: Sadam, que passa a história como mártir e herói, e Bush, que passa como torturador, genocida e laranja da fraude dos derivativos.
NOITE E DIA
A seguir, a carta do presidente iraquiano denunciou que o local em que ele estava preso – e que o autor da matéria, James Meek, apontou tratar-se da base dos EUA no Aeroporto de Bagdá – havia sido “transformado num lugar de tortura dos presos, em geral à noite, e também durante a maior parte do dia”. Sadam revelou, então, estar sendo submetido à privação do sono. Note-se que, embora expondo a carta, Meek tenta o tempo todo denegrir a imagem de Sadam, isto é, amenizar o lado dos torturadores. Realmente deve ser muito difícil para um vizinho de Wall Street entender porque o destemido Sadam – cuja coragem até seus inimigos foram forçados a admitir – se sentia tocado pelo sofrimento alheio, dos outros patriotas que estavam sendo torturados a poucos metros. Aliás, um ano depois, Sadam encabeçou uma greve de fome, junto com 11 líderes do Baas prisioneiros, contra a tortura e maus tratos.
“Minha oportunidade de dormir neste lugar é limitada e quase rara”, afirmou Sadam na carta, esclarecendo que “no total dos últimos três dias, tinha podido dormir no máximo, ao todo, de quatro a cinco horas”. “Eu não acho que seja possível a qualquer um que tenha um coração humanitário e sensível dormir em meio aos gritos dos torturados e às batidas de porta e rangidos de cadeiras”.
CONFIRMAÇÃO
Como dissemos, a carta, de próprio punho de Sadam, só veio corroborar o que já havia sido registrado em vários outros momentos. Nas entrevistas que concedeu, na época, à revista dos EUA “Newsweek” e aos jornais alemães “Die Presse” e “Tageszeitung”, o advogado jordaniano da equipe de defesa do presidente, Issam Ghazzawi, afirmou que os americanos o haviam torturado durante dois dias. “Sua perna foi quebrada... eles bateram nele, o esmurraram e chutaram”. Depois disso, o puseram em uma cela incomunicável. Também o interrogaram durante meses sem a presença de um advogado. (mas, como observou Ghazzawi, Sadam jamais foi interrogado sobre armas químicas, biológicas ou nucleares. “Em nenhum momento. Os americanos sabiam que era uma mentira desde o início. Não lhe perguntaram uma só questão sobre esse assunto”). Também o ex-ministro da Justiça do governo Johnson, Ramsey Clark, denunciou que Sadam foi torturado.
Em outra entrevista, essa, por meio do advogado Kalid Al Dulaimi, à revista egípcia “Al Ousboua” [A Semana], em janeiro de 2005, atendendo a uma pergunta do defensor, Sadam descreveu o episódio da sua captura e novamente confirmou a tortura. Informado sobre a montagem exibida por Bush acerca da sua prisão [“o buraco em Tikrit”], Sadam disse que “o que mostraram não foi senão um filme de cowboy, aliás dos ruins. A realidade é que estava com um amigo em um local de Saladino [sua província natal]. Foi no final do dia e estava lendo o Alcorão. Quando subi para fazer a oração, fui surpreendido pelos norte-americanos que me encurralaram. Estava sem armas e não pude me defender. Fui então encarcerado e torturado selvagemente durante o primeiro e o segundo dias”. Foi nessa entrevista, feita logo após a primeira aparição pública do presidente perante o tribunal-farsa, episódio em que pôs de joelhos o “juiz”-chefe a ponto de terem de o substituir, que Sadam afirmou que “os norte-americanos abandonarão o Iraque pela porta dos fundos” e que a Resistência havia sido “preparada muito antes da guerra”.
ANTONIO PIMENTA
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