Além do Cidadão Kane

terça-feira, 12 de maio de 2009

O que involuntariamente o New York Times revela sobre a guerra no Afeganistão

“Ao descrever a vida dos soldados e chamar a atenção para as infernais condições locais, os artigos do New York Times revelam muitíssimo mais do que se supõe que os seus autores queriam revelar. Para quem quer que os leia com alguma consciência histórica, eles descrevem uma guerra colonial contra uma população no seu conjunto, levado a cabo por tropas estadunidenses que não encontram muito sentido na violência que estão a desencadear contra o povo afegão".
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Alex Lantier*
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Ao longo das últimas duas semanas, o New York Times publicou uma série de artigos sobre as condições em que os soldados estadunidenses lutam no Afeganistão.
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Ao descrever a vida dos soldados e chamar a atenção para as infernais condições locais, os artigos do New York Times revelam muitíssimo mais do que se supõe que os seus autores queriam revelar. Para quem quer que os leia com alguma consciência histórica, eles descrevem uma guerra colonial contra uma população no seu conjunto, levado a cabo por tropas estadunidenses que não encontram muito sentido na violência que estão a desencadear contra o povo afegão.
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Em 20 de Abril, o Times publicou um artigo intitulado «Apanhados, uma corrida para fugir à zona Taliban». Começa com a descrição de um pelotão estadunidense atentar proteger-se para escapar a uma emboscada Taliban que quer vingar a morte de um deles, e continua assim: «Tinha começado outro encarniçado confronto num barranco do Este do Afeganistão, condicionado pelas circunstâncias que fizeram com que a guerra contra os Taliban pareça interminável: um terreno acidentado que favorece as emboscadas e que os soldados estadunidenses e evita que os soldados estadunidenses se agrupem; aldeias completas colaboram com os resistentes, adversários experimentados que lutam de acordo com as possibilidades de cada um e aproveitando as suas vantagens».
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A resposta dos soldados encurralados é pedir apoio aéreo e artilharia, o que é feito com o lançamento de bombas e mísseis sobre o leito do rio onde foram apanhadas as tropas estadunidenses. Os objectivos, aparentemente, não incluem apenas as ladeiras desérticas onde se refugiam os resistentes, mas também as aldeias. O Times acrescenta: «soldados com metralhadoras pesadas e lança-granadas automáticos concentram-se em três aldeias – Donga, Laneyal e Darbart – donde disparam sobre o pelotão encurralado».
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A meio deste artigo, o Times explica que a população local é hostil porque o governo afegão, apoiado pelos Estados Unidos, os deixou sem trabalho ao proibi-los de viver na zona. E sublinha: «agora os Taliban pagam melhores salários no vale» e acrescenta que as forças estadunidenses estabeleceram a sua base na região de uma serrania. Depois, o leitor inteira-se que as forças estadunidenses estão a utilizar munições com fósforo branco – arma química que queima a carne até aos ossos – e que um fotógrafo do Times acompanha os soldados no confronto. O artigo não diz se o Times aceitou a auto-censura a troco da autorização para acompanhar os soldados em combate.
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Uma vez assassinados vários afegãos e abandonado o confronto, os soldados procuraram e acabaram por encontrar o cadáver de um soldado que tinha desaparecido. O comandante da companhia disse-lhes: «não podemos dizer-lhe nada que nos possa devolver Dewater. Mas o melhor que podemos fazer por ele é continuar a cumprir a tarefa que vocês fizeram».
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Ao que parece, o comandante referia-se ao incidente descrito num artigo anteriro do Times. No artigo de 17 de Abril, Dar a volta ao assunto: os soldados estadunidenses montam uma emboscada aos Taliban com resultados eficazes, escreve-se: «A emboscada, na Sexta-feira Santa, converteu-se num apoio emocional aos soldados que se encontram na província de Kunar, que a consideraram como uma reafirmação da excelência do seu equipamento e treino e uma consoladora vingança, numa zona onde nos últimos anos se tinham perdido mais vidas estadunidenses que em qualquer outra».
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A maior parte do artigo de dia 17 de Abril era dedicada à descrição detalhada de como os soldados estadunidenses «mataram pelo menos 13 resistentes, ou mesmo mais, com espingardas, metralhadoras, minas Claymore, granadas de mão e uma navalha».
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No artigo de dia 20 de Abril, o Times explica que os anciãos da aldeia «chegaram ao posto avançado para dizer que os estadunidenses tinham disparado contra um grupo de homens da localidade que procuravam uma menina que se tinha perdido». O comandante estadunidense limitou-se a rejeitar a denúncia dos anciãos como «uma das mentiras mais ridículas que alguma vez tinha ouvido».
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De uma forma repetida, o Times ressalta a hostilidade da população para com a ocupação estadunidense. Num outro artigo desta série publicado em 13 de Abril, No Afeganistão os soldados cumprem duas fazes da guerra, informa: «Os camponeses disseram sem rodeios aos militares estadunidenses que não os querem ali… Na sua aldeia, os soldados encontraram uma velha que levava uma espingarda de assalto sob a sua burka; noutra aldeia um rapaz de 12 anos foi apanhado com um lança-granadas».
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O que ressalta destes relatos do Times, independentemente de quais foram as suas intenções, é a descrição de uma ocupação imperialista. O Times aceite como correcto que a hostilidade da população local contra a ocupação estaduidense deveria ser reprimida, que seja permitido despojá-los arbitrariamente dos seus meios de vida, e que se possa assassinar os habitantes locais sem que isso dê lugar a qualquer processo. No que diz respeito aos soldados estadunidenses, perante a dor causada pela morte de companheiros, ao que parece, recomenda-se-lhes que se vinguem assassinando afegãos.
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A cobertura do Times, dá-se pouco depois de o presidente Barack Obama – cuja eleição se deveu em grande parte à oposição popular à guerra e às suas primeiras declarações contra a guerra do Iraque e do governo Bush – anunciar os seus planos de escalada bélica estadunidense no Afeganistão. Em 27 de Março, Obama tornou público o seu propósito de enviar um mínimo de mais 21.000 soldados para o Afeganistão e intensificar os ataques estadunidenses no interior do Paquistão.
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No artigo de 13 de Abril fica claro que a política de Obama incrementará a luta, o que é detalhado nos artigos posteriores. Diz o Times: «São visíveis novas edificações de uma série de pequenas bases estadunidenses entre Kabul e a fronteira paquistanesa». Os seus responsáveis afirmaram que essas infra-estruturas albergarão a maioria desses 21.000 novos soldados que devem chegar no final deste ano e servirão de rampa de lançamento para que as tropas substituição ocupem as vagas existentes».
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As forças estadunidenses vão apresentar aos afegãos um ultimatum: ou unirme-se às milícias pagas pelos Estados Unidos ou enfrentar os seus ataques. No artigo de 15 de Abril intitulado Ao recrutar uma milícia afegã, os Estados Unidos enfrenta um desafio, o Times sublinha: «Os militares estão a copiar uma das páginas de um programa semelhante ao que contribuiu para levar a tranquilidade ao Iraque, onde os estadunidenses contrataram mais de 100.000 iraquianos, a maioria sunitas e muitos deles membros da resistência, para manter a paz».
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No Afeganistão, as forças estadunidenses reúnem os velhos das aldeias para lhes dizer «se está a acabar o tempo» para decidir se se unem às milícias pagas pelos EUA. Aqueles que recusarem serão considerados inimigos. Um afegão que trabalha para eles disse a uns velhos reticentes: «se não aceitarem, vamos considerá-los Taliban».
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O Times está perfeitamente consciente de que estes confrontos ao longo das regiões fronteiriças entre o Afeganistão e o Paquistão se vão estender ao interior do Paquistão, com desastrosas consequências para este país. «Os militantes Taliban estão a formar grupos com milícias locais para fazer incursões no Punjab, a província que alberga mais de metade dos paquistaneses, revitalizando uma aliança que as autoridades paquistaneses e estadunidenses afirmam que constitui um risco para a estabilidade do país… Enquanto os ataques com aviões não tripulados ameaçam os refúgios dos Taliban e da al-Qaeda na zona fronteiriça povoada de tribus, os resistentes estão a atacar cada vez mais no interior do Paquistão, como vingança e na procura de novos refúgios».
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Os Taliban também ganham apoio com o apelo à hostilidade dos camponeses para com os latifundiários, que constituem uma parte substancial da classe dirigente paquistanesa. Os Taliban obrigaram os senhores da guerra a partir, denunciaram os contratos de arrendamento rural e controlam as minas locais. Lutam, segundo o Times, «em qualquer parcela de poder: os proprietários das terras e líderes eleitos – normalmente as mesmas pessoas – e uma polícia mal paga e desmotivada».
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Num espantoso artigo de análise das classes que parece deslocado nas suas páginas, o Times acrescenta que, segundo os analistas e funcionários: «Depois da independência em 1947, o Paquistão manteve uma pequena classe alta de latifundiários que conservou as suas propriedades, enquanto os seus trabalhadores continuavam como servos. Desde então, os governos paquistaneses não foram capazes de levar por diante uma reforma agrária, nem sequer estabelecer as infra-estruturas mínimas educativas ou sanitárias. Não existem previsões de progresso para a maioria rural pobre».
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Poderá desculpar-se os leitores do Times não se interroguarem sobre o porquê de estes temas não serem publicados com mais frequência. Mas, esta importante afirmação coloca outra questão: Que se passa nos Estados Unidos para permitir que o seu principal aliado no sub-continente indiano, o Estado do Paquistão, mantenha um tão iníqua estrutura de classes? O que é certo é que o capitalismo opressivo do Paquistão está estreitamente associado aos interesses da burguesia estadunidense na região.
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A guerra de Obama contra o Afeganistão e o Paquistão – que continua sem fissuras as políticas de Bush e dos seus predecessores – defende uma ordem regional que demonstrou ser extremamente favorável para a classe dirigente norte-americanas. As forças estadunidenses e a violência noPaquistão bloqueiam os acessos por terra desde a China e a Índia às reservas energéticas do Golfopérsico, e prossegue a política dos EUA de isolar o Irão e ameaçar a Rússia pelo Norte.
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Deste modo, evitam o desenvolvimento de acontecimentos que pudessem ameaçar o papel dominante que jogam o exército estadunidense e os interesses energéticos e financeiros na Eurásia e Próximo Oriente e, pode acrescentar-se, no próprio interior dos EUA.
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Estas políticas não estão ligadas ao aumento da prosperidade ou da democracia. Pelo contrário, implicam o uso da violência para reprimir populações descontentes e manter as elites corruptas com as quais a burguesia estadunidense partilha o espólio da região. Esses são os interesses que provocam o banho de sangue descrito nas páginas do Times.
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Este texto foi publicado em 22 de abril de 2009, no World Socialist Web Site
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Tradução de José Paulo Gascão
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Original em ODiário.info

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