Além do Cidadão Kane

quinta-feira, 3 de setembro de 2009

Como transformar o assassino em inocente e a vítima em culpado

A Secretaria de Segurança do Rio Grande do Sul anunciou que manterá em sigilo a identidade do assassino do sem terra Elton Brum da Silva, executado com um tiro de espingarda nas costas, dia 21 de agosto. A estratégia não surpreende quem vem acompanhando a dura perseguição movida pelo Poder Público do RS contra os movimentos sociais, MST entre os mais visados, acentuada em violência, tortura e crueldade desde abril de 2007, quando o Conselho Superior do MP estadual decidiu extinguir aquele Movimento.

Antonio Cechin e Jacques Távora Alfonsin
A Secretaria de Segurança do Rio Grande do Sul já comunicou que vai manter em sigilo a identidade do assassino de Elton Brum da Silva, morto pelas costas, por um brigadiano, durante a execução de uma ordem judicial de reintegração de posse no município de São Gabriel, no dia 21 de agosto passado.

A estratégia não surpreende quem vem acompanhando a dura perseguição movida pelo Poder Público do Estado contra os movimentos sociais, MST entre os mais visados, acentuada em violência, tortura e crueldade desde abril de 2007, quando o Conselho Superior do Ministério Público estadual decidiu extinguir aquele Movimento.

Violações as mais aberrantes à dignidade humana, à cidadania e aos direitos humanos fundamentais das/os sem-terra tentam bloquear qualquer tipo de protesto em defesa desses mesmos direitos.

“Não falem” (direito de opinião), “não se mexam” (direito de locomoção) “não se juntem” (direito de reunião), “fechem suas escolas” (direito à educação), “fechem suas farmácias caseiras” (direito à saúde), “identifiquem-se como criminosas/os, deitem com o rosto no chão, agüentem a surra das nossas armas” (abuso de poder e autoridade) são ordens que todo esse povo trabalhador e pobre recebe freqüentemente da Brigada Militar, cumprindo mandados judiciais pleiteados pelo Ministério Público.
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No dia 21 de agosto passado, inibir as liberdades constitucionais era pouco. A “lição” tinha de ser eliminar a vida. A ordem para Elton foi “morra.”

Poder-se-ia pensar que, diante da gravidade do fato (um tiro pelas costas dado por um brigadiano numa pessoa desarmada) todas aquelas brutalidades inconstitucionais - e oficiais o que é muito mais grave - pudessem, quando menos, envergonhar o Executivo do Estado, a sua Secretaria de Segurança, a Brigada Militar e o Judiciário, particularmente o Ministério Público. Não há nenhum sinal convincente disso. Até pelo contrário. Estão em curso três posicionamentos táticos, típicos das ditaduras, objetivando enredar toda a história do ocorrido, dentro do “devido processo legal”, para que o tempo se encarregue de levar tudo ao esquecimento, mantendo quente a temperatura da repressão violenta ao povo.


O primeiro é o de não tornar pública a identificação do assassino (não vá o homem dizer alguma coisa que não deve...); o segundo é o de salvar as aparências de que “as instituições democráticas funcionam normalmente, aqui no Estado, e existem prazos para apuração dos fatos”; o terceiro é o de acentuar a criminalização progressiva do MST, aproveitando ao máximo opiniões de mídia, conscientes ou não da instrumentalização com que são usadas, capazes de desviar o foco da vergonhosa covardia, atribuindo tudo o que aconteceu ao MST.

No último fim de semana, essa terceira tática já viveu um dos seus momentos, mas com um sério revés. Uma das mais tradicionais vozes de condenação daquele Movimento [Percival Puggina, em artigo publicado no jornal Zero Hora], atribuiu-lhe, entre outras coisas, “tranqüilidade” para invadir terras como a de alguém que “vai ao banheiro do restaurante”; seus instrumentos não são de borracha como as balas da Brigada; é um Movimento totalitário que impediu até a fala de um promotor em Caxias do Sul. “Trabalhar a terra, há muito, não é mais seu objetivo verdadeiro.”

Recebeu resposta na mesma edição e na mesma página do jornal. Assinada, por sinal, por quem tem uma história de defesa dos direitos humanos sem comparação com a do critico do MST, do qual, a rigor, o que mais se conhece é o azedume com que verbera tudo o que, de alguma forma, cheire a defesa material daqueles direitos.

Quem dera um/a acampado/a sem-terra, as vezes durante anos, suportando as mais duras condições de vida, tendo de si apenas a esperança de conquistar o seu pedaço de chão, pudesse, sequer, entrar num restaurante. O crítico do MST, pela facilidade da imagem que enfeitou o seu deboche, deve freqüentar muitos restaurantes. Conviria que ele um dia se servisse do “banheiro” de um acampamento e conferisse os pobres instrumentos de trabalho que não são de borracha, como ridicularizou. De borracha e cassetete o que esses trabalhadores conhecem, mesmo, é a dos outros “instrumentos de trabalho” que os agridem nas execuções das ordens judiciais. Um deles, agora mesmo, está debaixo da terra que lhe foi negada, e não foi bala de borracha que o abateu.

Se a tal opinião, ainda, condena quem impediu um promotor de falar, em Caxias do Sul, como prova de totalitarismo, admira que não tenha se escandalizado com o totalitarismo sob o qual o Ministério Público do Estado armou um inquérito secreto para surpreender, à traição, como aquela que matou o Elton, não só o MST, mas qualquer cidadão minimante consciente da injustiça social estrutural de que são vítimas os agricultores sem terra gaúchos e brasileiros. Um desses promotores, por sinal, quando as vozes iradas das muitas vítimas da sua truculência começaram a ecoar, aí sentiu. Achou melhor pousar de vítima e fugir da raia que ele mesmo tinha armado.

Por tudo isso, as nossas leitoras e leitores que se cuidem. Quando entrarem no banheiro de um restaurante, o álcool-gel que os defendem da gripe suína não os imunizará contra o veneno que destila a critica do MST publicada no último fim de semana. Talvez seja o caso, então, de colocá-la ao lado do vaso, na cesta dos papéis higiênicos usados.
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Original em Carta Maior

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