Além do Cidadão Kane

sábado, 5 de setembro de 2009

Entrevista com o dirigente haitiano Henry Boisrolin

"O nosso povo continuará a resistir às tropas de ocupação das Nações Unidas"
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Que notícias há nos meios de comunicação sobre o Haiti e do seu povo mártir? Onde estão o respeito pelos Direitos Humanos e a pela soberania dos países? Que crimes têm praticado as tropas ocupantes agora comandadas pelo exército brasileiro? Quem julga os crimes delito comum dos soldados ocupantes?

Nesta entrevista de Carlos Aznarez com Henry Boisrolin, dirigente do Comitê Democrático Haitiano, é dado um panorama da dramática situação do Haiti.
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Carlos Aznárez*
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Há um país na América Latina, que não só foi o primeiro a libertar-se, como também ajudou que outras nações subjugadas pelos espanhóis acelerassem o caminho para a sua emancipação. Trata-se do mais esquecido e deplorado dos lugares do nosso continente: Haiti. É precisamente lá que se está desenvolvendo uma importante escalada de resistência popular, não só contra o mau governo de René Preval, mas também contra aqueles que afirmam estar em terra haitiana para colaborar com a sua população. Referimo-nos às tropas das Nações Unidas (MINUSTAH).
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Mais concretamente, em finais de 2008, a MINUSTAH contava com a participação de 9.028 uniformizados (7.000 soldados e 2.019 polícias), apoiados por 502 funcionários internacionais, 1.197 funcionários nacionais e 205 voluntários da ONU, todos sob o comando de militares brasileiros.
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Estas tropas mercenárias, entre as quais há argentinos, uruguaios, brasileiros, chilenos, bolivianos e de outros países, operam repressivamente contra a população haitiana e é por isso que vêm surgindo inúmeras denúncias que, geralmente, ficam pela total impunidade.
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Um dos casos apresentados por organizações haitianas de direitos humanos, refere-se ao massacre ocorrido em 22 de Dezembro de 2006, na comunidade de Cité Soleil, depois de uma manifestação de cerca de dez mil pessoas, que exigiam o regresso do ex-presidente Jean-Bertrand Aristide ao país e a retirada dos eletivos militares estrangeiros. Segundo relatos da população local e imagens de vídeos produzidos pela organização Haiti Information Project - HIP (Projeto de informação de Haiti) as forças da ONU atacaram a multidão e mataram cerca de 30 pessoas, incluindo mulheres e crianças.
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Isto ocorre também num contexto de silêncio generalizado a nível informativo. O Haiti não conta para as crônicas dos jornais e muito menos para as telas de televisão. O seu povo, não entra nas estatísticas populacionais. Todavia, apesar disso, o povo não se resigna a ser dominado e luta.
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Desta realidade e das suas conseqüências para a América Latina, falamos com o dirigente do Comitê Democrático Haitiano, Henry Boisrolin, que recentemente chegou da capital haitiana onde esteve com a missão de reclamar a solidariedade urgente com quem hoje está à cabeça da resistência popular, os estudantes universitários e do secundário que se encontram, desde há meses, ocupando vários estabelecimentos de educação.
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Carlos Aznárez (CA): - Qual é a situação do Haiti na atualidade?
Henry Boisrolin (HB): - O Haiti encontra-se ocupado, mas os media internacionais apresentam este fato com se se tratasse de «ajuda humanitária». Mesmo a própria Missão da ONU diz que é «para a estabilização do Haiti». Há um conjunto de 40 países que integram esta Missão e, infelizmente, temos tropas latino-americanas a ocupar o país. Como é sabido, o comando militar encontra-se sob a liderança do Brasil. Nós rejeitamos esta situação, porque entendemos que é uma violação da nossa autodeterminação, da nossa soberania e dignidade como povo.
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A resistência vem de setores distintos da população, mas ultimamente são os estudantes universitários, a que se juntam alguns das escolas secundárias, que têm ganhado as ruas para exigir a retirada das tropas e a promulgação duma lei sobre o salário mínimo, que foi votada pelo Parlamento. O que se passa é que o governo de Preval não a aceita, sob o pretexto de que se Haiti já tem 70% da sua população ativa no desemprego, promulgar uma lei que significa aumentar de 1,7 a 4 ou 5 dólares o salário mínimo diário, «iria provocar uma avalanche de demissões que agravaria ainda mais a situação dos trabalhadores». Para os estudantes, esta resposta é uma nova falácia do governo, e vão lançar ações de resistência, ocupando várias Faculdades.
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CA: - Como reagiu o governo de Preval?
HB: - Reprimindo os estudantes. Houve vários mortos e dezenas de detenções, professores perseguidos, lançadas bombas de gás lacrimogêneo e balas de chumbo sobre os manifestantes. A Missão das Nações Unidas foi acompanhar a polícia haitiana em toda essa tarefa repressiva. É isto que pretendemos denunciar e, ao mesmo tempo, pedir solidariedade para que os governos dos países sul-americanos percebam que não é essa a via, que Haiti não necessita de elementos militares. Do que nós precisamos é da ajuda que nos dão Cuba e Venezuela, é esse o modelo válido de apoio, de humanidade, de respeito pela nossa independência e soberania.
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CA: - Vamos ficar neste último tema. As tropas das Nações Unidas dizem que vão cumprir tarefas humanitárias. Pelo menos, é isso que explicam as chancelarias dos países que estão implicados nesta manobra, como a Argentina, o Uruguai, o Brasil e outros. Inclusivamente, alguns partidos progressistas encarregaram-se de explicar que «era melhor que se retirassem as tropas latino-americanas a que Haiti seja invadido pelos Estados Unidos». Que tem a dizer sobre essa questão?
HB: - Antes de tudo, há que desmentir uma coisa: não houve nenhuma autoridade legítima do meu país que tivesse pedido a intervenção, isso é uma mentira. Em 2004, o ano do bicentenário da nossa independência, havia um presidente legítimo, que era Jean-Bertrand Aristide. Havia distúrbios no país e em nome dessa desculpa entrou um comando militar norte-americano, que seqüestrou o presidente, meteram-no num avião e mandaram-no para o exílio na República Centro-Africana, e agora está na África do Sul. Uma ação muito semelhante aquilo que fizeram ao Presidente Zelaya. Não são casos isolados e abrem precedentes que ameaçam a segurança e a democracia no resto dos países latino-americanos.
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Isto foi o que aconteceu, ninguém pediu tal intervenção. Impuseram um governo, que organizou as eleições e que deram a vitória a Preval, assim legitimando o golpe, igual ao que se passou agora nas Honduras.
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É verdade que o presidente Preval, que venceu nos sufrágios, pediu a manutenção da MINUSTAH, mas, originalmente, não houve nenhuma autoridade haitiana que a tenha pedido.
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Por outro lado, não porque Preval o tenha feito, tem que ser o sentimento do povo haitiano e essa é outra falácia. Há que ir a Haiti e andar nas ruas dos seus bairros mais populares, para compreender a recusa majoritária das pessoas à presença das tropas de ocupação.
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CA: - Qual é a atuação das tropas invasoras?
HB: - A atuação das tropas das Nações Unidas ofende qualquer ser humano que tenha um pouco de sensibilidade. Num país, onde 70% da sua população ativa não têm trabalho, onde temos uma taxa de mortalidade infantil superior a 80 por mil, e uma taxa de analfabetismo, no campo, que supera os 70%, e que nas cidades é de 50%, e onde a esperança de vida não ultrapassa os 50 anos. Estamos falando de um país com as suas estruturas econômicas destruídas, onde 60% do seu orçamento provêm de ajuda internacional e das remessas que enviam os haitianos que trabalham no estrangeiro. Por tudo isto, dizer que é preciso ir com tanques, aviões e helicópteros para resolver a situação, é totalmente falso e cruel.
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Que fizeram estes «salvadores»? Violaram moças e mulheres haitianas, espancaram e torturaram os nossos jovens. Não somos nós que o dizemos, mas uma investigação da ONU confirmou esse fato, e a única coisa que se fez foi retirar alguns soldados e mandá-los para casa, porque segundo o Convênio da Resolução 545, que permitiu a entrada das tropas no dia 1 de Junho de 2004, o Haiti não tem o direito de julgar nenhum militar estrangeiro, mesmo que tenha cometido crimes contra a humanidade. Mais submissão que isto não pode existir. E há que dizer que há soldados do Sri Lanka, do Uruguai e de outros países, acusados destes abusos.
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CA: - Ou seja, violações dos direitos humanos realizados no âmbito de uma "legalidade" imposta, que permite mais impunidade.
HB: - Exato. Todavia há outro tema que desejo abordar e que às vezes fica postergado porque aprofundamos mais o estudo da realidade política ou econômica de um país. Refiro-me à dignidade humana, o valor da relação e dos sentimentos humanos, o contacto entre os povos. Quer dizer, uma história em comum. Haiti, depois de se tornar independente, concedeu uma solidariedade efetiva a muitos povos latino-americanos, ajudou a Francisco Miranda, a Bolívar, em duas ocasiões, com espingardas, dinheiro e outros abastecimentos, mas, fundamentalmente, com voluntários. Centenas de haitianos morreram pela independência da Venezuela e de outros países. Por isso dizemos que receber este tratamento atual é uma afronta à história. O nosso povo não cometeu nenhum crime, apenas pediu mais justiça. E sofremos o comportamento mercenário, pois muitos destes invasores vêm pelo dinheiro, ganham milhares de dólares sem gastar absolutamente nada. Em seis ou sete meses que ali permanecem, voltam aos seus respectivos países bem recheados de dinheiro, situação que não podem ter nos seus lugares de origem.
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Então, aproveitando um momento de debilidade, de falta de capacidade do movimento popular haitiano para inverter a situação, vieram e avassalaram o Haiti… Vemos, por exemplo, em Porto Príncipe, nalguns bairros menos pobres, como pela noite (não há praticamente vida noturna em Haiti, não há luz, nem os serviços que há noutros países) se vê um contínuo desfilar de automóveis das Nações Unidas à frente dos melhores bares e restaurantes, gastando muitos dólares, e, nas redondezas, o povo dormindo nas ruas.
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CA: - É realmente ofensivo e indigno...
HB: - Isto obriga à reflexão, porque temos ouvido dizer a alguns governos, quando passam os furacões ou acontecem outras ações climáticas, que as tropas estão lá precisamente para nos ajudar nos maus momentos. Mas isso não é determinante, nem mais ou menos. A ocupação de Haiti é um novo esquema para vergar a rebelião popular, num país onde as classes dominantes não têm alguma possibilidade de ganhar eleições através de processos limpos. Então, é preciso impor, pela força das armas, uma estratégia de domínio. É esse o verdadeiro papel dos ocupantes. E para aqueles que dizem que «é melhor essas tropas em vez das dos Estados Unidos», nós dizemos o contrário, pois dessa forma teríamos de frente o inimigo de maneira mais clara. Por outro lado, é duríssimo ver irmãos latino-americanos, enviados por governos que deveriam ter outro tipo de comportamento para com o drama haitiano. Estive em bairros populares que foram muito castigados por estas tropas e ouvi o que dizia o coração dessa gente. A indignação, com que contam como os bombardeiam de madrugada, nestes bairros, para querer apanhar supostos bandidos. Ou quando os soldados entram em tropel, e dão pontapés nas portas, arrastando para fora os aterrorizados habitantes. Por isso, não há lugar a mais mentiras: trata-se de uma ocupação desavergonhada e clara da República do Haiti e na medida em que esta situação continue haverá mais resistência.
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Este texto foi publicado em Resumen Latinoamericano
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* Carlos Aznárez é jornalista argentino e diretor de Resumen Latinoamericano.
Henry Boisrolin é dirigente do Comitê Democrático Haitiano
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