Na manhã de 16 de junho, o governador do Distrito Federal, José Roberto Arruda, do DEM, e o secretário de Saúde Distrital, Augusto Carvalho, do PPS, se encontraram no Almoxarifado Central da Secretaria para participar de um lance de marketing: a entrega de 30 kits de equipamentos, no valor de 3 milhões de reais, para desafogar a precária rede de unidades de terapia intensiva (UTIs) do sistema de saúde local. O evento, como logo em seguida iria demonstrar o Ministério Público, era um embuste. A compra não só era falsa como a transação escondia parte de um esquema voltado para a privatização da saúde no DF.
Dois dias depois, ao mesmo Almoxarifado se dirigiu um grupo liderado pelo promotor Jairo Bisol, do Ministério Público do Distrito Federal, titular da Promotoria de Justiça de Defesa da Saúde (Prosus). Acompanhado de um perito e dois analistas, todos médicos, Bisol descobriu que os equipamentos eram, além de usados, tecnologicamente obsoletos. Além disso, a maioria não tinha nota fiscal nem qualquer documento a lhe atestar a origem. O destinatário da mercadoria não era o secretário Augusto Carvalho, mas duas pessoas estranhas ao serviço público: Gustavo Teixeira de Aquino e Marisete Anes de Carvalho.
No endereço indicado nas caixas, um escritório no Setor Sudoeste de Brasília, o Ministério Público localizou a empresária Marisete Carvalho, dona de uma pequena empresa de reformas de condomínios e de comércio de equipamentos hospitalares. Marisete é um dos elos a unir os negócios da saúde no Distrito Federal a um esquema de contratos irregulares descoberto pelo MP do DF, com potencial de se transformar numa ação de improbidade administrativa contra diversas autoridades brasilienses.
Ao depor no Ministério Público, Marisete Carvalho disse ter sido procurada, em maio, por um empresário de Goiânia, Davi Clemente Monteiro Correia, dono da Equipamed. Amigo pessoal de Fernando Antunes, secretário-adjunto de Saúde do DF e braço direito de Augusto Carvalho, usou apenas o endereço comercial de Marisete para formalizar a remessa dos equipamentos por carga aérea. Ao promotor Bisol, a empresária disse que as caixas foram recolhidas no aeroporto de Brasília. Disse desconhecer o outro destinatário, Gustavo Teixeira Aquino, embora ambos tenham figurado como habitantes do mesmo endereço.
O mistério em torno do tal Gustavo foi resolvido pelo MP. Ele é irmão de Rodrigo Teixeira de Aquino, dono da Intensicare Gestão em Saúde Ltda, representante de equipamentos hospitalares. E sócio do empresário Davi Correia – amigão do secretário-adjunto Fernando Antunes – em um Centro Brasileiro de Medicina Avançada, em Goiânia. Em 2 de julho, 15 dias depois de Arruda e Carvalho anunciarem a compra fajuta dos kits de saúde, a empresa de Rodrigo Aquino foi agraciada com um contrato de 33,3 milhões de reais para administrar 70 leitos de UTI do Hospital Regional de Santa Maria – a menina dos olhos do esquema de privatização da saúde no DF.
A explicação dada ao promotor Jairo Bisol sobre o imbróglio aqui descrito beira o surreal. Ao depor no Ministério Público, o secretário-adjunto Fernando Antunes admitiu a amizade com o empresário Davi Correia, da Equipamed, e fez uma confissão aparentemente absurda: os 30 kits levados ao Almoxarifado Central, anunciados publicamente pelo governo Arruda como parte de um projeto de ampliação de UTIs, ao custo de 3 milhões de reais, resultavam de um empréstimo de aparelhos usados, a serem devolvidos em 90 dias.
Na origem das transações está a decisão de Arruda em contratar, sem licitação, a Real Sociedade Espanhola de Beneficência, da Bahia, para gerir o Hospital Regional de Santa Maria, inaugurado há um ano e meio, ao custo de 130 milhões de reais (8 milhões dos quais repassados pelo governo federal). Trata-se de um contrato de dois anos, firmado em janeiro, de 222 milhões de reais, sob suspeita de servir ao caixa 2 eleitoral. O contrato soa irregular a começar pela instituição contratada, investigada pelos ministérios públicos estadual e federal da Bahia por fraude e desvio de verbas da prefeitura de Salvador, sob auspícios do prefeito João Henrique Barradas, do PMDB.
O processo de escolha da Real Sociedade Espanhola tem sido contestado pelo Ministério Público e pela bancada de quatro deputados do PT na Câmara Legislativa do DF. O partido entregou, em vão, uma representação ao procurador-geral de Justiça, Leonardo Bandarra, para suspender o convênio. “Há uma quadrilha instalada na Secretaria de Saúde”, acusa o deputado Cabo Patrício, do PT, um dos articuladores da natimorta CPI da Saúde do DF. Graças ao apoio de 20 dos 24 deputados distritais, Arruda evitou a investigação na Câmara local.
Em 15 de abril, a promotora de Justiça Cátia Vergara tentou impedir a terceirização do Hospital de Santa Maria. De acordo com ela, a Constituição Federal concedia à iniciativa privada uma participação exclusivamente complementar junto ao Sistema Único de Saúde (SUS). A mesma norma é reforçada pela Lei Orgânica da Saúde, Lei Orgânica do DF, Lei de Licitações e Contratos, uma portaria do Ministério da Saúde e outra do Conselho Nacional de Saúde.
Por meio de uma ação civil pública, Cátia Vergara acusou a terceirização de injustificável do ponto de vista administrativo, haja vista existirem centenas de aprovados em concursos públicos realizados pela Secretaria de Saúde do DF, jamais chamados a trabalhar. Para ela, o Hospital de Santa Maria poderia estar em regime de pleno atendimento à população, não fosse a decisão do governador Arruda de terceirizá-lo.
Em 20 de abril, a 8ª Vara de Fazenda Pública do DF, com base na ação do Ministério Público Distrital e de um parecer do Tribunal de Contas do DF, determinou a suspensão do contrato com a Real Sociedade Espanhola. Menos de um mês depois, o Tribunal de Justiça do Distrito Federal derrubou a decisão de primeira instância e o GDF prosseguiu a terceirização do Santa Maria. Para tal, ignorou outros graves antecedentes da feliz ganhadora do contrato.
A Real Sociedade Espanhola é investigada pela Controladoria-Geral da União (CGU) por suspeita de desvio de dinheiro público em Salvador. A CGU apontou o envolvimento da entidade no desvio de cerca de 80 milhões de reais de verbas federais, estaduais e municipais. A investigação foi iniciada após o assassinato de Neylton Souto da Silveira, em 2007, na sede da Secretaria Municipal de Saúde. Silveira trabalhava no setor de Gestão Plena, responsável pelo pagamento das prestadoras de serviços terceirizados à prefeitura de Salvador.
Com base nessas informações, há duas semanas, o Conselho Nacional de Saúde solicitou ao Ministério da Saúde o cancelamento dos repasses do SUS ao GDF até o final das investigações sobre o contrato de terceirização do Hospital de Santa Maria. O CNS levou em conta as informações levantadas, em agosto, pelo Departamento Nacional de Auditoria do SUS (Denasus), do ministério. A auditoria revelou que recursos repassados pelo governo federal eram usados em aplicações financeiras no Banco de Brasília (BRB), estatal e controlado por Arruda. Outras informações foram levantadas pelo Sindicato dos Médicos (Sindmédico) do DF, responsável por uma pesquisa do Instituto Vox Populi, de junho, que aponta a reprovação de mais de 80% do sistema de saúde local pela população.
Segundo o Denasus, o GDF recebeu, em 2008, 378 milhões de reais da União para investir em programas de Saúde. Mas, em março, 238 milhões de reais desse montante estavam aplicados em Certificados de Depósitos Bancários (CDBs) no BRB. Por uma razão jamais devidamente esclarecida, o secretário Augusto Carvalho, bancário de origem, aplicou recursos públicos federais em troca de rendimentos. Procurado por CartaCapital, Carvalho não foi encontrado, por três dias, pela assessoria de imprensa da secretaria para esclarecer as denúncias.
No Ministério Público Distrital e no Conselho Nacional de Saúde há desconfiança na política de privatização da saúde no DF. “Vários desses processos de terceirização demonstram ter sido montados para formar caixa 2 de campanha de grupos políticos”, diz Francisco Batista Júnior, presidente do CNS. Ele espera, constatadas as irregularidades, que o ministro da Saúde, José Gomes Temporão, nomeie interventor federal para gerir recursos no DF. O ministro tem 30 dias para decidir se acata a resolução do CNS.
A inspiração terceirizante de José Roberto Arruda veio de uma doutrina do governador José Serra (PSDB), de São Paulo, transformada em lei estadual em 4 de setembro, de modo a reservar 25% do atendimento nos hospitais a convênios e consultas da rede privada. Esses espaços, assim como no caso do Hospital de Santa Maria, serão administrados pelas Organizações Sociais (OSs), como a Real Sociedade Espanhola de Beneficência. “Só querem dar a essas organizações o filé dos serviços, os mais rentáveis, como as UTIs”, avisa o promotor Jairo Bisol, do Ministério Público do DF.
Para essas organizações sociais, trata-se de um ótimo negócio, porque o poder público entra com toda a infraestrutura física e de pessoal. As OSs administram e recebem os recursos dos contratos. Para o Distrito Federal, em 2009, o governo federal destinou à Secretaria de Saúde 2,1 bilhões de reais. Até 14 de setembro, segundo o site “Contas Abertas”, com informações do sistema de controle de gastos da administração federal, o Siafi, foram pagos 1,5 bilhão de reais. Além disso, a Secretaria de Saúde tem orçamento próprio de 1,7 bilhão de reais para 2009. Isso gerou recursos, para o ano corrente, de 3,8 bilhões de reais. A dúvida é saber onde esse dinheiro será aplicado, se no sistema de saúde ou em CDBs do Banco de Brasília.
Leandro Fortes é jornalista, professor e escritor, autor dos livros Jornalismo Investigativo, Cayman: o dossiê do medo e Fragmentos da Grande Guerra, entre outros.
Um comentário:
Saudações. Me encontro em estado apaixonado pelo seu diário eletrônico.
Abraços!
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