Além do Cidadão Kane

domingo, 13 de setembro de 2009

Entrevista com o Coronel-aviador da FAB, Sued Castro Lima

Robson Braga *

Intervenção militar estadunidense: quanto mais guerras, melhores negócios
O coronel-aviador da Força Aérea Brasileira, Sued Castro Lima, avaliou a intervenção militar estadunidense na América Latina. As ações dos Estados Unidos serão intensificadas com a instalação, agora em setembro, de sete bases militares na Colômbia. Para Sued, "os sucessivos conflitos bélicos em que o país tem se envolvido confirmam a avaliação de que ‘quanto mais guerras, melhores negócios’".

Sued Lima é graduado em Engenharia Civil e membro fundador do Observatório das Nacionalidades, entidade de pesquisa ligada à UFC (Universidade Federal do Ceará, estado na região Nordeste do Brasil) e à UECE (Universidade Estadual do Ceará). Já participou de diversas missões militares nos EUA, Israel, Argentina, Chile e Rússia. Deixou o serviço ativo em 1998.
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Adital - Como o senhor avalia a atual intervenção militar dos Estados Unidos na América Latina?

Sued Castro Lima - Avalio essas intervenções como coerentes com todo o histórico de ações militares e políticas que têm caracterizado a trajetória dos EEUU nas relações internacionais, desde o século XIX. São cerca de três dezenas de intervenções armadas e incontáveis ações golpistas para destituir ou tentar destituir governos de países latino-americanos que eventualmente não atendam os interesses imperiais da grande potência. Cuba é a campeã de intervenções armadas sofridas, com pelo menos seis casos, inclusive após a vitória da revolução de Fidel. Refiro-me à tentativa de invasão da ilha, no ataque à Baia dos Porcos, em 1961. Algumas dessas intervenções redundaram em anexação de extensas regiões, como no caso do México, em 1846, que perdeu metade de seu território, a parte mais rica, hoje os Estados da Califórnia, Novo México e Texas.

Adital - Na sua avaliação, essa intervenção militar está relacionada a aspectos como intervenção econômica e política? De que modo?

Sued Castro Lima - Os governos norte-americanos sempre atuaram, em maior ou menor escala, para atender os interesses do poder econômico do país. Em 1961, o presidente Dwight Eisenhower, general e herói de guerra, reconheceu publicamente que o chamado complexo militar-industrial influenciava decididamente nas políticas interna e externa dos Estados Unidos.
Os sucessivos conflitos bélicos em que o país tem se envolvido confirmam a avaliação de que "quanto mais guerras, melhores negócios". São guerras que têm três sentidos destacados: testar novos tipos de armamentos, fazer o marketing desses produtos e impor os interesses globais da grande potência imperial.
Há uma declaração de um general dos marines (fuzileiros navais), Smedley D. Butler, feita em tom de ironia, já em 1935, que responde bem à pergunta: "Nos 33 anos que passei no serviço ativo, atuei na maioria das vezes como um gangster a serviço do capitalismo. "Ajudei" a tornar o México um lugar seguro para os interesses petrolíferos norte-americanos, "ajudei" a tornar o Haiti e Cuba um lugar decente para os rapazes do National City Bank recolherem rendas, "ajudei" a purificar a Nicarágua para a casa bancária dos Irmãos Brown, "limpei" a República Dominicana para os interesses açucareiros e "ajudei" a endireitar Honduras para as companhias norte-americanas de frutas."

Adital - Algo mudou na política intervencionista dos EUA a partir da posse de Barack Obama?

Sued Castro Lima - Até o momento, não está visível um novo rumo na política externa dos EEUU. O governo Obama pouco tem feito de efetivo para conter o genocídio do povo palestino pelo Estado de Israel, reproduzindo o comportamento dos governos republicanos, em que os presidentes falavam muita coisa e pouco faziam; amplia a guerra no Afeganistão; mantém tropas no Iraque; desenvolve retórica intervencionista contra a Coreia do Norte e o Iran; não atua firmemente contra o golpe militar que depôs o presidente hondurenho Manuel Zelaya; e amplia sua presença militar na América do Sul, com as bases na Colômbia e no Peru.
Deve-se considerar, em verdade, que a margem de manobra de qualquer governo progressista norte-americano é bastante estreita em face do poderio da indústria de armamento, e correlatas, e dos conglomerados financeiros, que impõem seus interesses com firmeza e despudor.
Bases militares dos EUA na Colômbia esmagam movimentos revolucionários

Adital - O que representa, para a América Latina, a instalação das bases militares na Colômbia? E para o Brasil?

Sued Castro Lima - Segundo o pensador francês Michel Foucault, um dos instrumentos do exercício do poder resulta da presença física do dominador. Através dessa presença, pode ostentar a força destruidora que lhe é própria, intimidando o mais fraco.
Já o estrategista britânico Liddell Hart, que viveu no século passado, considerava que um dos maiores objetivos estratégicos do comandante militar é o de ter acesso prévio ao mais amplo grau de conhecimento sobre as forças do virtual inimigo, como ocupam o terreno, como pensam, quem são seu chefes, como se preparam, enfim, avaliar seus pontos fortes e suas vulnerabilidades. A presença militar no território de potencial conflito armado ajuda a resolver bem tais questões, pois possibilita a observação e o acompanhamento dos acontecimentos que interessam ao potencial invasor, abrindo-lhe acesso a informações cruciais para o desencadeamento de seus eventuais propósitos de intervenção militar.
A concessão do governo de Uribe à instalação em território colombiano de sete bases militares operadas por milhares de soldados norte-americanos tem duplo efeito: fere a soberania de seu país e mina a União Sul-americana de Nações (Unasul), com o seu Conselho de Defesa, ainda embrionários, filhos diletos da política externa e da estratégia de defesa regional desenvolvidas pelo governo Lula.

Adital - O senhor desconfia da justificativa dos EUA, que explicam a implantação das bases militares como mecanismo de combate ao narcotráfico na região. De que modo essas bases podem ameaçar a soberania dos países latino-americanos?

Sued Castro Lima - O argumento de fachada de combate ao narcotráfico há muito se perdeu. Desde que foi iniciado, no ano de 2000, o Plano Colômbia tem redundado em enorme fracasso. A produção de cocaína vem aumentando, exatamente porque aumentou o mercado, concentrado em sua maior parte no EUA. Segundo o Washington Office for Latin America, órgão do governo dos EUA, o preço da cocaína no país caiu 36% nos últimos anos. A queda do preço é mais resultado do incremento da oferta do que de uma redução da demanda. Os EUA continuam sendo os maiores consumidores de cocaína do mundo, com 2,5% da população viciada na droga, algo em torno de 7 milhões de pessoas.
Da produção sul-americana que segue para os EUA, apenas 10% do lucro fica nos países produtores, enquanto 90% vão para as mãos das máfias que operam dentro dos EUA. São dados que indicam que o território onde deveria se travar o principal combate contra o narcotráfico é o próprio território norte-americano e não a selva amazônica.
Ainda sobre o tema droga, a Folha de São Paulo publicou (23/08/2009) uma informação surpreendente: durante a era Taleban (1996-2001), a produção de ópio foi totalmente desmontada no Afeganistão. O líder do grupo, mulá Mohammad Omar, considerava a droga "anti-islâmica", e ameaçava executar quem cultivasse a papoula. Atualmente, com a presença de tropas estrangeiras no país, a região é responsável pela produção de 70% do ópio no mundo.
Afinal, o que sobra evidente é que o combate ao narcotráfico na América Latina é apenas o que se chama em contra-informação de história-cobertura. Em 1986, Reagan incorporou à Doutrina de Segurança Nacional a National Security Decision Directive (NSDD), segundo a qual camponeses cultivadores de coca, militantes de esquerda, guerrilheiros marxistas, governos populares nacionais e grandes traficantes fariam parte de um estranho complô destinado a destruir a integridade e o poderio político dos EUA. O tráfico funciona, assim, como pretexto para justificar ações militares destinadas a promover o esmagamento dos movimentos populares ou revolucionários que surgem na América Latina e intimidar ou neutralizar iniciativas regionais autônomas nos campos econômicos e de defesa, como é o caso da União de Nações Sul-Americanas (UNASUL).

Adital - Como o senhor avalia a postura dos países da América Latina diante da implantação dessas bases?

Sued Castro Lima - Identificam-se claramente dois tipos de postura: os lenientes e os resistentes. Formam no primeiro grupo os governos explicitamente de direita, como os da Colômbia, Peru, México e os golpistas de Honduras. Esses últimos sequer contam com o reconhecimento da esmagadora maioria da comunidade internacional de nações e dos órgãos multilaterais, como a ONU e a OEA. No segundo grupo alinham-se o Brasil, Argentina, Equador, Venezuela, Bolívia, Paraguai, Uruguai, Chile, Cuba, Nicarágua, El Salvador e outros, constituindo uma ampla e significativa maioria, o que não deixa de ser um fato novo, comparado à situação que existia há poucas décadas, em que o alinhamento com os EUA se dava automaticamente.
Sob esse ponto de vista, merece destaque a política externa do Governo Lula, que tem marcado posição de qualidade nos principais litígios internacionais ocorridos recentemente.

Adital - Em nível mundial, qual tem sido o papel desempenhado nas bases militares estadunidenses? Como as nações mundiais têm encarado essa intervenção militar?

Sued Castro Lima - A estratégia global dos EUA reproduz o que é desenvolvido na América Latina. O império faz-se presente em grande parte do planeta explorando e oprimindo povos, impondo, enfim, sua vontade pela força da corrupção e das armas. Esteve presente em praticamente todos os conflitos bélicos que ocorreram no planeta ao longo dos séculos XX e XXI. Levaram morte e destruição à Coreia, Vietnam, Laos, Iraque e Afeganistão, para citar apenas os eventos mais destacados, sem esquecer os ataques atômicos a Hiroshima e Nagasaki.
Atualmente, os EUA mantêm cerca de 820 bases em 60 países. Dispõem de um exército de 1,5 milhões de homens, dos quais 300 mil no exterior, sendo metade no Iraque e no Afeganistão. A outra metade espalha-se por outros países. O Grande Império do Norte gasta em seu aparato bélico o equivalente a 42% dos gastos militares globais, algo próximo a 610 bilhões de dólares.
Considero que as nações que não abdicam de sua soberania certamente repudiam tal estratégia de ocupação. Felizmente, o Brasil integra esse grupo de países e tem mantido firme ação diplomática de negação da presença hegemônica dos EUA nos países latino-americanos.
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* Jornalista da Adital

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