Além do Cidadão Kane

domingo, 30 de agosto de 2009

Critérios

Dia 20 de Agosto, Álvaro Uribe fez aprovar no Senado uma proposta de referendo para alterar a Constituição que lhe impede o terceiro mandato. No mesmo dia, no cumprimento de buscas domiciliares em casa do senador Alirio Villamizar ordenadas pelo Supremo Tribunal, foram encontradas vultosas quantidades de dinheiro em pesos e em divisas, alegadamente para pagamento de subornos a 37 senadores que votaram favoravelmente a proposta de Uribe. A midia nacional ignorou o assunto. Critério editorial, claro.
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Anabela Fino*
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No final da semana passada o senado colombiano aprovou uma proposta de referendo com o objetivo de permitir a reeleição de Álvaro Uribe em 2010. A decisão contou com 56 votos a favor e dois contra, num total de 102 senadores, uma vez que os representantes dos partidos Liberal e Pólo Democrático optaram por não comparecer à sessão. O debate ficou marcado por acusações de suborno a senadores que antes se opunham a um terceiro mandato de Uribe.
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No mesmo dia (20 de Agosto), a descoberta de mais de 1.000 milhões de pesos (mais de meio milhão de dólares) em numerário e outra quantia milionária não especificada em divisas em casa do senador conservador Alirio Villamizar fazia manchetes na imprensa colombiana. As buscas domiciliares foram ordenadas pelo Supremo Tribunal de Justiça na seqüência de denúncias, que envolvem mais 37 senadores, num escândalo de corrupção envolvendo dinheiros públicos para garantir – como se veio verificar – o voto favorável a uma reforma constitucional (esta em 2004) que permitiu a reeleição de Álvaro Uribe em 2006.
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Juntamente com o dinheiro encontrado em casa de Villamizar, que para além de senador é também vice-presidente do Partido Conservador, o partido de Uribe, os investigadores apreenderam três discos rígidos de computador, agendas e outros documentos. A investigação prossegue, mas já se ouvem apelos à reintrodução do direito à impunidade... dos deputados da nação.
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Dias antes de rebentar o escândalo, representantes do democrático regime de Uribe assinavam em Washington o acordo para a instalação de sete bases militares dos EUA no país, em nome da defesa da democracia e da luta contra o tráfico de droga e a corrupção.
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Entretanto, no início desta semana, um estudo divulgado em Bogotá dava conta de que pelo menos oito milhões de colombianos vivem na indigência e outros 20 milhões são pobres, numa população de 44 milhões de habitantes. O relatório, monitorizado por delegados do Banco Mundial e da Comissão Econômica para a América latina e Caribe, considera «pobre» uma família de quatro pessoas com um rendimento mensal inferior a 543 dólares, e «indigente» uma família idêntica com um rendimento de 248 dólares.
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Ainda esta semana, mas no dia 25, a Câmara de Representantes colombiana, com 166 membros, votava a proposta de referendo para a reeleição de Uribe. Ao contrário do que seria de esperar, dada a particular atenção que os comentaristas nacionais dão à Colômbia e a Uribe, nada disto motivou reflexões ou artigos de opinião. No melhor dos casos, a pretensão de levar a cabo uma segunda reforma constitucional em cinco anos para garantir um terceiro mandato a Uribe foi tema de uma «nota», sem direito a comentários. Nem haveria motivo para tal, evidentemente. Como toda a gente sabe, Uribe é um democrata que pode ser reeleito as vezes que quiser, ao contrário de Zelaya, nas Honduras, onde não houve «luvas» a deputados mas não faltaram mãos sujas para aplaudir o golpe de Estado. O pretexto, recorda-se, foi impedir a consulta popular sobre uma eventual reforma constitucional.
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* Jornalista
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Publicado em Avante

Tortura sem punição

Obama criou nova unidade para interrogatórios
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Um documento desclassificado pelo Departamento de Justiça norte-americano revelou novos detalhes sobre os crimes cometidos pelos EUA contra detidos suspeitos de terrorismo. A ONU manifesta-se contra a impunidade.
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De acordo com o texto a que o The New York Times teve acesso, membros da CIA terão torturado os prisioneiros e ameaçado as suas famílias caso não confessassem o seu envolvimento com a al-Qaeda e a participação em atentados.
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No seguimento dos elementos que vêm confirmar o que há muito não era segredo (isto embora muito mais esteja por saber, a julgar pelas páginas inteiras do relatório rasuradas), o procurador Eric Holder – que até agora defendeu a não investigação das práticas da administração Bush junto com Barack Obama e com o diretor da CIA nomeado pelo presidente em exercício, Leon Panetta – foi obrigado pela pressão e contestação pública a nomear John Durham para conduzir as eventuais acusações contra os agentes.
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A União norte-americana de Liberdades Civis (ACLU, na sigla inglesa), cujas ações em tribunal contra a ocultação das provas da tortura foram decisivas para o atual desenrolar dos processos, considera a decisão um avanço, mas insuficiente, por isso exige que se procedam a investigações abrangendo não apenas os executantes das ordens mas também os responsáveis políticos.
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Reagindo às informações divulgadas segunda-feira, a Alta Comissária das Nações Unidas para os Direitos Humanos, Navi Pillay expressou repúdio por qualquer tipo de impunidade nos casos de tortura e pediu que fossem investigadas também as denuncias relativas aos ex-presos do campo de concentração norte-americano de Guantánamo, bem como as alegadas torturas praticadas noutras instalações semelhantes administradas pelos EUA.
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Blackwater e CIA
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A juntar à publicação do relatório da CIA, a semana passada o matutino nova-iorquino informou que, em 2004, a CIA contratou os serviços da Blackwater para ajudar a realizar o trabalho sujo.
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O New York Times baseia-se nos testemunhos de atuais e antigos operacionais da secreta para avançar que a empresa de segurança privada teve um papel importante na captura e aniquilação de alegados militantes da al-Qaeda no Afeganistão, não tendo no entanto sido possível apurar se a Blackwater se limitava a vigiar os alvos e a fornecer treino aos agentes. Certo é que a companhia recebeu da administração republicana, com os votos dos democratas nos orçamentos da guerra, naturalmente, milhões de dólares em serviços prestados.
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Obama aprova nova unidade
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Tudo isto ocorre em simultâneo com a criação por parte da Casa Branca de uma nova unidade dita de contra-terrorismo encarregue de interrogar os indivíduos suspeitos de pertencerem a «células terroristas».
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Segundo o The Washington Post, Obama terá subscrito o diploma que institui o Grupo de Interrogatório de Detidos de Alto Valor antes de partir de férias visando melhorar a imagem da sua administração, quer perante os que contestam o uso de tortura e exigem a investigação das iniciativas na era Bush, quer perante os que, como o ex-vice-presidente Dick Cheney, sustentam que as investigações têm motivações políticas e insistem que o uso de «técnicas avançadas de interrogatório» salvaram vidas.
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Original em Avante!

O arsenal udenista está de volta, o que poderá detê-lo?

A moralidade de quase todos os grandes órgãos da imprensa brasileira está empenhada em corroer a candidatura Dilma Rousseff, custe o que custar. A observação de Gramsci sobre a "imprensa que adquire funções de partido político" se aplica como uma luva ao jornalismo praticado hoje no país. Carlos Lacerda (foto), caracterizado como "o Corvo" nas charges publicadas pelo jornal getulista Última Hora, manejava com maestria o ferramental de fraudes &
ofensas, que hoje encontra aprendizes excitados nas redações.

Saul Leblon

O método da calúnia é tão antigo no arsenal político da direita quanto o seu objetivo de alcançar o poder a qualquer custo, seja pelo voto, o impeachment, o golpe, a fraude ou uma mistura das quatro coisas simultaneamente, como fez a UDN nas eleições de 1955, na primeira chance real de chegar ao poder pelo voto, depois da tentativa de golpe abortado pelo suicídio de Vargas.

Não deu certo. Os udenistas Juarez Távora e Milton Campos tiveram 30% dos votos contra 36% dados a Juscelino. A vitória apertada, mas indiscutível da chapa que tinha como vice João Goulart, herdeiro político de Vargas, não desanimou os udenistas.

Derrotados nas urnas em outubro de 1955, desencadearam uma campanha agressiva para impedir a posse de Kubitschek, marcada para janeiro do ano seguinte. Na linha de frente do golpismo estava o jornal O Estado de São Paulo - alter-ego da UDN paulista. O mesmo que hoje lidera a pressão pela derrubada de Sarney em nome da "moralização" do Congresso e da faxina ética na política nacional.

Não é preciso ser simpatizante da oligarquia maranhense para suspeitar que exista algo mais do que mau jornalismo no bombardeio que atribui a Sarney todas as malfeitorias praticadas no Senado, desde a sua criação em 1824, na primeira Constituição do Império. O que está por trás é a volta do arsenal "democrático" udenista em pleno aquecimento para 2010, quando o PMDB terá peso decisivo na sucessão de Lula, que cultiva o apoio da legenda num acordo de reciprocidade com Sarney.

A ressalva é tão óbvia que chega a ser admitida nas entrelinhas de editorialistas espertos, funcionando mais como salvaguarda cínica do texto, do que uma crítica efetiva ao jornalismo praticado em nome da moralidade.

A moralidade de quase todos os grandes órgãos da imprensa brasileira está empenhada em corroer a candidatura Dilma Rousseff, custe o que custar. A observação de Gramsci sobre a "imprensa que adquire funções de partido político" se aplica como uma luva ao jornalismo praticado hoje no país.

Cada flanco que se abre nas fileiras do governo aciona pautas especiais; mini-editorias específicas; forças-tarefas montadas à toque de caixa. "Analistas" e acadêmicos são requisitados para teorizar sobre "a decadência irreversível do petismo", ao mesmo tempo em que petistas hesitantes, e ex-petistas recorrentes, endossam a dissolução da pureza vermelha contaminada pelos vícios do poder.

Desprovida de partidos de massa, a direita sempre teve nas campanhas midiáticas um valioso instrumento de intervenção na ordem institucional. Se desta vez a mutação flagrada por Gramsci ganha acentuação inédita é porque os resultados acumulados pelos dois mandatos de Lula deixaram um minúsculo campo programático para a coalizão demotucana se movimentar em 2010. O braço midiático deve compensar com denúncias a fragilidade propositiva.

Malgrado as limitações da aliança que o sustenta, Lula superou a pior crise do capitalismo desde 1930, acentuando as linhas de vantagem do seu governo em relação à estratégia conservadora abraçada pelo PSDB e predominantemente apoiada pela mídia. A saber: o desastroso recuo do Estado em todas as frentes do desenvolvimento; o alinhamento carnal com os EUA na política externa e comercial; a terceirização dos grandes desafios sociais à "eficiência dos mercados auto-regulados". Hoje esse cardápio se traduz na tentativa de desconstrução caluniosa da candidatura Dilma Rousseff; nas denúncias contra a Petrobras e na torcida mal-disfarçada com o êxito do país no pré-sal.

Tivesse o Brasil persistido nessa rota, seria hoje uma terra arrasada por desemprego e quebradeira, a exemplo do que sucede no Leste europeu - última fronteira de expansão do neoliberalismo e seu obituário mais dramático.

Ocultar esse flanco substituindo o principal pelo secundário, portanto, sobrepondo à transparência da crise o que o monopólio midiático pauta como relevante, é o recurso precioso de Serra para contrabalançar sua opacidade programática em 2010.

Trata-se de uma das especialidades legadas pelo udenismo à política nacional. Carlos Lacerda, caracterizado como "o Corvo" nas charges publicadas pelo jornal getulista Última Hora, manejava com maestria o ferramental de fraudes & ofensas, que hoje encontra aprendizes excitados nas redações.

Exemplos: dia 22 de agosto o comentarista político Fernando Rodrigues, classificou o senador Mercadante de "vassalo" do Planalto, com chamada na primeira página da Folha; antes dele, Danuza Leão comparou a ministra Dilma Rousseff, na mesma Folha, a um misto de pai autoritário e diretora "carrasca". Analista das Organizações Globo, o que não significa apenas uma inserção profissional, Lucia Hippolito espetou no título de um comentário sobre o PT (Globo online) o vocábulo-síntese de sua filiação carnal ao udenismo: "a pelegada".

A fome dos petizes lacerdistas encontra fontes obsequiosas nas fileiras oposicionistas.

Olhos, ouvidos e bocas de Serra na capital federal, ao lado de Virgílio, Agripino, Sergio Guerra e Jereissati, o senador pernambucano Jarbas Vasconcelos (PMDB-PE) definiu o PT, em recente entrevista, como uma sublegenda do "lulismo". Na boa tradição udenista equiparou o "lulismo", portanto o Presidente da República, aos "caudilhismos latino-americanos, a exemplo do peronismo argentino". O conservadorismo do senador evoca um tema recorrente no cardápio lacerdista, que inspirou violenta campanha contra Vargas nos anos 50, fartamente difundida pela rádio Globo, dirigida pelo jovem udenista, Roberto Marinho.

Vale a pena rememorar esse "case" do modo udenista de abduzir a realidade e derivar daí vale-tudo de aniquilação dos adversários.

Em abril de 1954, o governo Vargas sangrava. Uma ciranda de ataques descomprometidos de qualquer outra lógica que não a derrubada de um projeto de desenvolvimento nacionalista fustigava o Presidente que criara a Petrobras, o BNDES e aplicava uma política de fortalecimento do mercado interno com forte incremento do salário mínimo.

O clima pesado de acusações e ofensas pessoais atingia Getúlio e sua família de forma indiscriminada. Lutero, irmão do Presidente, era tratado nas manchetes como "bastardo" e "ladrão". O ministro do Trabalho, João Goulart, era reduzido a "personagem de boate". Faltava, porém, um ponto de coagulação para transformar o tiroteio desordenado em míssil capaz de abrir um rombo na legalidade institucional.

Em meio à radicalização, em março de 54 surge a denúncia de que "os caudilhos" Vargas e Perón planejavam um suposto "Pacto ABC" (Argentina –Brasil –Chile), cuja meta era "a integração sul-americana num arquipélago de repúblicas sindicais contra os EUA". Carlos Lacerda, na Tribuna da Imprensa e na rádio Globo, e a Banda de Música da UDN no Congresso – um pouco como o jogral que hoje modula as vozes da coalização demotucana e da mídia "ética" - martelavam a denúncia incansavelmente, testando por aproximação as condições para o impeachment de Vargas.

A notícia do pacto foi vigorosamente desmentida pela chancelaria argentina, mas um ex-ministro rompido com Getúlio aliou-se a Lacerda para oferecer "evidências" das negociações entre o Brasil e Perón.

A inexistência de provas – exceto a menção genérica de Perón a uma aliança regional — não demoveu a mídia que deu à declaração ressentida do ex-ministro contornos de verdade inquestionável, repetida à exaustão até acuar o governo. Vargas reagiu na única direção que lhe restava. No 1º de maio de 1954 anunciou o famoso reajuste de 100% para o salário mínimo num discurso marcado por elogios a Goulart, o ministro do Trabalho, mentor do reajuste, afastado pela pressão udenista.

Ao conclamar os trabalhadores a se organizarem para defender seus próprios interesses, o discurso de 1º de Maio soava como um ensaio de despedida. Talvez até mais radical, na convocação aos trabalhadores, do que a própria Carta Testamento deixada quatro meses depois, quando o Presidente atirou contra o próprio peito para não ceder à pressão da mídia pela renúncia.

"A minha tarefa está terminando e a vossa apenas começa. O que já obtivestes ainda não é tudo. Resta ainda conquistar a plenitude dos direitos que vos são devidos e a satisfação das reivindicações impostas pelas necessidades (...). Como cidadãos, a vossa vontade pesará nas urnas. Como classe, podeis imprimir ao vosso sufrágio a força decisória do número. Constituí a maioria. Hoje estais com o governo. Amanhã sereis o governo"

(Getúlio Vargas, 1º de Maio de 1954).

A dramaticidade do suicídio iluminou o quadro político gerando transparência e revolta diante do golpismo em marcha. Porta-vozes da oposição a Getúlio foram escorraçados nas ruas do Rio; uma multidão consternada e enfurecida cercou e depredou a rádio Globo que saiu do ar; veículos do jornal de Roberto Marinho foram caçados e queimados nas ruas da cidade. Para Carlos Lacerda não sobrou um centímetro de segurança em terra: o "Corvo" foi obrigado refugiar-se no mar, a bordo do cruzador Barroso.

A determinação conservadora de arrebatar o poder, todavia, não esmoreceu.

Poucas semanas depois do suicídio, em 16 de setembro de 1954, uma segunda "denúncia" associada ao Pacto ABC explodiria nos microfones da rádio Globo. Era a largada, com 12 meses de antecipação, para a primeira disputa eleitoral em vinte e quatro anos que não contaria com a presença divisora de Getúlio na cena nacional.

O alvo agora era João Goulart, o herdeiro político do presidente morto e adversário certo da UDN no pleito de outubro de 1955. Na voz estridente de Lacerda, comentarista de diversos programas da emissora de Marinho, foi lida em primeira mão a "Carta Brandi". Uma suposta correspondência do deputado argentino Antonio Brandi a João Goulart, apresentada como a prova "definitiva" da conspiração para implantar "uma república sindicalista no Brasil".

Na efervescência da guerra eleitoral, o escândalo levou o Exército a abrir inquérito imediatamente, enviando missão oficial a Buenos Aires para aprofundar as investigações.

A conclusão oficial de que tudo não passara de uma grosseira fraude, forjada por Lacerda e alimentada pela imprensa anti-getulista, não abalou seus protagonistas. Lacerda rapidamente mudou o foco da denúncia, invertendo os termos da equação: fora vítima de uma cilada, uma isca arquitetada por adversários eleitorais para desmoralizar a democracia e acelerar a implantação de uma república sindical no país - exatamente como descrevia a (falsa) "Carta Brandi". "(...)

Se a carta não é verdadeira", escreveu na Tribuna de Imprensa, um mês depois da derrota da UDN para JK e Jango no pleito de outubro de 1955, "seu conteúdo está de acordo, mais ou menos, com o que se sabe da vida política do Sr. Goulart..."

Qualquer semelhança com o malabarismo denuncista que povoa a mídia tucana nos nossos dias não é mera coincidência. Os mesmos objetivos, os mesmos métodos, a mesma elasticidade ética e democrática estão de volta.

A vitória apertada de JK em 1955 foi tratada pelo udenismo como um sintoma de "ilegalidade das urnas". Inconformada, a chamada "imprensa da UDN" iniciou uma nova campanha, desta vez liderada pelo jornal Estado de São Paulo, que não poupou papel e tinta na luta para impedir a posse do presidente eleito Juscelino Kubitschek.

Se chegaram a esse ponto contra JK em 1955 e fracassaram, muito se deve ao desbloqueio do discernimento popular causado pelo suicídio do estrategista genial que foi Getúlio Vargas. O arsenal udenista, porém, está de volta e seu partido midiático não disfarça a determinação de transformar 2010 na nova inflexão conservadora na vida do país. Resta saber que força poderá detê-los agora, a ponto de despertar na sociedade o mesmo efeito esclarecedor do tiro que sacudiu o país na manhã de 24 de agosto de 1954.

Original em Carta Maior

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sábado, 29 de agosto de 2009

Nostalgias da era soviética

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A dissolução da União Soviética deixou na miséria a região oriental montanhosa de Tayikistán, cuja população se viu obrigada a retomar os costumes nômades.
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Independente desde 1991, Tayikistán limita com outras duas ex-repúblicas soviéticas ao norte e oeste, Kirguistán e Uzbekistán, com a China a leste e com Afeganistão ao sul.
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Este país de sete milhões de habitantes passou de mais pobre da União Soviética a mais pobre do mundo. A independência significou o fim de granjas, minas, canais de irrigação estatais, também de redes de transporte e centrais de geração de energia elétrica.
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Alguns analistas ocidentais celebram o regresso às "tradições ancestrais", mas muitos dos que têm que se adaptar à realidade do livre mercado não acham o mesmo.
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"Não estaria aqui se tivesse outra opção", disse a IPS Timurbek, um filólogo russo aposentado e dedicado à criação de animais. "Antes a gente optava por ser nômade, agora é uma questão de necessidade".
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Timurbek montou sua grande tenda de campanha de lã, com as paredes decoradas e tapetes no chão, em um acampamento de uma meseta da cordilheira de Pamir que está a 4.100 metros de altitude.
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A cordilheira abarca principalmente a província autônoma de Badajshán Montanhoso, onde reside só três por cento da população, pouco mais de 210.000 pessoas, mas constitui quase a metade de seu território.
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A cordilheira de Pamir tem as montanhas mais altas do mundo, com altitudes de entre 3.000 e 7.500 metros. As condições extremas do clima convertem a zona em uma das menos densamente povoadas do planeta.
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O navegador do século XIII Marco Polo descreveu a região como "nada mais que um deserto sem assentamentos nem áreas verdes", tão fria que "nem sequer se vê voar um pássaro".
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Conhecida desde o século XIX como "teto do mundo", a cordilheira de Pamir foi percorrida por comerciantes da rota da seda e logo por espiões russos e britânicos.
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A única via de comunicação que atravessa as montanhas é a rodovia de Pamir, a segunda mais longa do mundo, construída pelo exército soviético nos anos 30.
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A rodovia está em muito mau estado e se usa principalmente para o contrabando de ópio e heroína do Afeganistão até o norte. Alguns a chaman de "rota do opio".
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"Na época dos soviéticos tínhamos todo tipo de alimento no comercio, combustível barato, ônibus e caminhos em bom estado", relatou Aziz, um granjeiro seminômade do acampamento. Enquanto, sua esposa manejava em silencio uma máquina rudimentar de fazer manteiga e iogurte, produzidos com leite de yak.
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"Nós não gostávamos de Stalin, mas aqui todo mundo tem saudade da União Soviética", disse a IPS Aziz, muçulmana sunita de origem kirguís. "Não podíamos praticar nossa religião livremente, mas havia comida e trabalho".
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Josef Stalin (1878-1953) foi presidente da União Soviética de 1927 até sua morte.
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Além dos tayikos, parentes dos iranianos, os quais constituem cerca de 80 por cento da população deste país, em Tayikistán há pamiris, que falam varias línguas de origem persa, e kirguís, que chegaram entre o século XVIII e XIX e falam um idioma túrquico.
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A população sobrevive da venda de gado e da produção leiteira, do cultivo de verduras em pequenas hortas e da assistência humanitária, graças à qual se evitou a fome que foi causada pelo bloqueio imposto durante a guerra civil dos anos 90.
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Sentindo-se discriminados pelo governo central, os pamiris da província de Badajshán Montanhoso declararam sua independência em 1992, o que desencadeou uma guerra civil até 1997 e tirou a vida de 100.000 pessoas.
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Desde então, o governo se enfureceu com a população da cordilheira, apesar da maioria sobreviver com um dólar por dia.
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O estilo de vida nômade do acampamento só pode manter-se no verão. Durante o gélido inverno, quando as temperaturas podem alcançar até 50 graus abaixo de zero, Aziz e os outros moradores se vêm obrigados a se refugiar na aldeia de Murgab, o maior assentamento na zona com apenas 6.500 habitantes.
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No mercado de Murgab, onde as pessoas costumam cobrir o rosto para se proteger dos fortes ventos que levantam nuvens de pó, a opção de produtos importados se limita a bolachas, pão, barras de chocolate e latas de peixe e carne, a maioria vencidas, a preços exorbitantes.
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A pobreza prejudica a educação. Alguns meninos e meninas não vão à escola porque seus pais não podem pagar os objetos escolares nem os uniformes.
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O combustível é limitado e os habitantes se vêm obrigados a usar tersken, um arbusto escasso, para aquecer as casas, o que leva à desertificação.
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Há possibilidades de produzir energia hidroelétrica, mas os investidores a consideram uma região perigosa porque os consumidores não podem pagar as contas. Algumas organizações tratam de promover fontes alternativas como a solar, muito eficiente em grandes altitudes.
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A eletricidade é tão escassa que a população está dividida em duas partes que se revezam no serviço. Alguns têm geradores, mas o preço do combustível é excessivo.
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Muitas aldeias que durante décadas tiveram eletricidade para calefação e cozinhar agora não têm nada, nem sequer no inverno, o que impede o funcionamento de escolas e hospitais neste rincão da hoje desfeita União Soviética.
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Original em Rebelión

Hugo Chávez e os meios de comunicação privados

por Salim Lamrani*

A Comissão Nacional de Telecomunicações da Venezuela começou a recuperar as freqüências hertzianas ilegalmente ocupadas pelos meios de comunicação de algumas grandes famílias para os redistribuir. Imediatamente os oligarcas denunciaram uma “violação da liberdade de expressão” e receberam o apoio dos seus homólogos ocidentais através dos meios de comunicação que eles detêm e, claro, da Repórteres Sem Fronteiras, fiel cão de guarda da subjugação da informação aos interesses de Washington.

Guillermo Zuloaga Núñez, presidente da Globovisión, participou ativamente no golpe de .Estado militar abortado de 2002. Acaba de dar o seu apoio aos golpistas hondurenhos. e apelou a que se siga o seu exemplo na Venezuela.

No dia 2 de Agosto de 2009, a Repórteres Sem Fronteiras (RSF) publicou um comunicado denunciando o encerramento de «trinta e quatro meios audiovisuais sacrificados por capricho governamental» na Venezuela. A organização parisiense «protesta com vigor contra o encerramento massivo de meios audiovisuais privados» e interroga-se: «É ainda permitido emitir publicamente a mais pequena crítica em relação ao governo bolivariano? Este encerramento massivo de meios reputados da oposição, perigoso para o futuro do debate democrático, só obedece à vontade governamental de calar as vozes discordantes, e só agravará as divisões no seio da sociedade venezuelana» [1].

A RSF refere-se à decisão tomada pela Comissão Nacional de Telecomunicações (Conatel) no dia 1 de Agosto de retirar a frequência a trinta e quatro estações de rádio e televisão [2]. Segundo a RSF, a decisão seria exclusivamente motivada pelo facto de estes meios de comunicação se terem mostrado críticos para com o governo de Hugo Chávez. Numa palavra, tratar-se-ia de um acto político para abafar a imprensa de oposição. Esta versão foi retomada pela grande maioria dos meios de comunicação ocidentais [3].

Ora, a realidade é outra e foi cuidadosamente ocultada pela RSF e pelas multinacionais da informação com o objectivo de enganar a opinião pública e de transmutar o governo mais democrático da América Latina (Hugo Chávez submeteu-se a quinze processos eleitorais desde que acedeu ao poder em 1998 e saiu vitorioso em catorze, em escrutínios saudados pelo conjunto da comunidade internacional pela sua transparência) num regime que atenta gravemente contra a liberdade de expressão.

De fato, a decisão da Conatel teria sido tomada em qualquer país do mundo numa situação semelhante. Várias rádios ignoraram deliberadamente uma intimação da Comissão destinada a averiguar o estado da concessão e a atualizar a sua situação. Depois de uma investigação, a Conatel descobriu numerosas irregularidades, tais como a existência de concessionários falecidos cuja licença era utilizada por uma terceira pessoa, a não renovação dos trâmites administrativos obrigatórios, ou muito simplesmente a ausência de autorização para emitir. Ora, a lei venezuelana, semelhante às do resto do mundo, estipula que os meios de comunicação que não renovem a sua concessão no prazo legal ou emitam sem autorização, perderão a sua freqüência, e esta voltará ao âmbito público. Assim, trinta e quatro estações que emitiam de forma ilegal perderam a sua concessão (4).

Na realidade, a decisão da Conatel, longe de limitar a liberdade de expressão, pôs fim a uma situação ilegal e abriu uma política de democratização do espectro radioelétrico venezuelano com a finalidade de colocá-lo ao serviço da coletividade. De fato, na Venezuela, 80% das rádios e televisões pertencem ao domínio privado, enquanto que apenas 9% delas são do domínio público, sendo o resto dedicado aos sectores associativo e comunitário. Para além disso, o conjunto dos meios privados venezuelanos está concentrado nas mãos de 32 famílias (5).

Assim, uma medida tomada pela Conatel para pôr fim a uma situação ilegal foi completamente manipulada pela RSF e pelos meios de comunicação ocidentais.

A RSF escolheu o seu lado defendendo acirradamente a oposição venezuelana, responsável por um golpe de Estado contra Chávez em Abril de 2002, golpe ao qual a organização parisiense deu imediatamente aval. A RSF defende particularmente o canal golpista Globovisión, que considera como o símbolo da liberdade de expressão na Venezuela (6). Não obstante, não assinala que para além da sua participação ativa no golpe de 2002, a Globovisión apoiou a sabotagem petrolífera desse ano, lançou um apelo aos contribuintes para que não pagassem os seus impostos e apelou à insurreição e ao assassinato do Presidente Chávez (7).

Ultimamente, a Globovisión deu o seu apoio à junta golpista das Honduras que derrubou o Presidente democraticamente eleito José Manuel Zelaya, unanimemente condenada pela comunidade internacional (8). O proprietário do canal, Guillermo Zuloaga Núñez, reconheceu o governo ilegal de Micheletti, lançando ao mesmo tempo um apelo ao golpe de Estado na Venezuela: «O governo auto-proclamado de Micheletti respeita a Constituição, e nós gostaríamos verdadeiramente que aqui na Venezuela se respeitasse a Constituição como se está respeitando em Honduras» (9).

A RSF não defende a liberdade de expressão na Venezuela. Prefere pôr-se do lado dos inimigos da democracia.

Salim Lamrani
استاذ، كاتب وصحافي فرنسي
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(1) Repórteres Sem Fronteiras, « Trente-quatre médias audiovisuels sacrifiés par caprice gouvernemental », 02/08/2009 (consultado a 03/08/2009).

(2) Sítio oficial da Conatel.

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3) Agencia Bolivariana de Noticias, “Productores independientes respaldan suspensión de emisoras radiales ilegales”, MP3, 04/08/2009.

(4) Fabiola Sánchez, « Radios desafían a Chávez operando por Internet », The Associated Press, 03/08/2009.

(5) Thierry Deronne, « A batalha popular para democratizar o “latifúndio” das ondas », Vive-fr.org, 02/08/2009; Agencia Bolivariana de Noticias, « Medida de Conatel no afectará libertad de expresión e información en Venezuela », 04/08/2009.

(7) Salim Lamrani, « Reporters sans frontières contre la démocratie vénézuélienne », Réseau Voltaire, 02/07/2009.

(9) Agência Bolivariana de Noticias , « Globovisión apoya marcha a favor de gobierno golpista en Honduras », 22/07/2009.
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Original em Voltaire

sexta-feira, 28 de agosto de 2009

Como a Europa mata os migrantes

Tradução de Thiago A.Maciel

Aproximadamente 80 eritreus saíram da costa da Líbia em direção à Europa por volta do dia 29 de julho. Vinte e um dias depois, a Marinha Militar Italiana, previamente avisada pela maltesa, encontrou o barco pneumático no qual viajavam apenas cinco tripulantes: os outros 75 morreram desidratados no caminho e seus companheiros de viagem jogaram seus corpos ao mar. Os cinco sobreviventes, entre eles uma mulher e dois menores de idade "reduzidos a esqueleto", relataram que haviam cruzado com 10 barcos pesqueiros durante as três semanas, mas apenas um deles parou para dar água e depois desapareceu.

Ao publicar a noticia, começou o clássico ping-pong diplomático entre os governos italiano, maltês e europeu. Precedentes não faltam: lembremos os casos Cap Anamur, ou Pinar. Malta "lavou as mãos" dizendo que uma patrulha que operava sob mandado de Frontex (Agencia Européia de Fronteiras) socorreu um barco pneumático em que os passageiros estavam em boas condições físicas (1) e rechaçaram ir a Malta, insistindo em seguir seu rumo a noroeste para alcançar seu destino. O ministro de Assuntos Exteriores italiano, Franco Frattini, acusou a União Européia de "falar muito e fazer pouco", pois ainda não decidiu como se deve atuar quando um grupo de imigrantes chega à Europa. Dennis Abbott, um dos porta-vozes da UE, declarou que "a Comissão Européia e os países da UE fazem o que está em suas mãos", para responder à emergência de embarcações clandestinas e que em outubro se tomarão novas medidas a respeito.

O professor Fúlvio Vasallo Paleologo, um dos máximos experts sobre o assunto, explica que desde o caso de Cap Anamur (2003) até o fim do caso dos sete pescadores tunicinos, acusados de favorecer a imigração clandestina (2007), foram sendo reduzidas as intervenções de salvamento por parte de navios mercantes por medo da conseqüência negativa para seus negócios.

Contudo, devido aos acordos operativos desde a primavera (um entre a Itália, Malta e Líbia; outro entre Malta e Líbia) a situação piorou. Por um lado, se reconhece a Malta, país com poucos meios militares, a coordenação da zona SAR (Salvamento e Resgate) mais extensa do Mediterrâneo central. Como conseqüência disso, as unidades militares italianas (mais numerosas que as maltesas) operam sob a coordenação das autoridades maltesas. Por outro lado, os acordos ítalo-líbios (alguns oficiais e outros secretos) estão tendo como fruto operações de patrulhamento conjunto com alguns jet-skis ítalo-líbios que serviriam para "devolver" os emigrantes às costas libanesas. Ao recair a coordenação dessas intervenções em mãos libanesas, as funções reais das unidades aeronavais de Frontex são cada vez mais evanescentes.

O que em realidade está ocorrendo, segundo Vasallo Paleologo, é que os autores do Regulamento Frontex, assim como quem tem idealizado e escrito esses acordos internacionais bilaterais, "tem utilizado a omissão de socorro, conseqüência direta ou indireta de uma divisão de competências tão bem armado, como uma autêntica 'pena de morte' para os emigrantes que se arriscam a atravessar o canal da Sicilia para fugir da Líbia e alcançar Malta ou Sicilia, quando não Lampedusa, blindadíssima para salvar a imagem turística da ilha, mas sobretudo os 'êxitos históricos' do governo italiano na 'guerra a imigração ilegal'".

"Como é possível que na Era da tecnologia um barco tão grande escape dos olhos de águia que patrulham todos os ângulos do planeta?", se pergunta um parente de uma vítima. Na comunidade eritréia da Líbia dizem que os organizadores intermediários das viagens receberam uma ligação de um telefone via satélite dia 29 de julho, na tarde em que os passageiros diziam ver a costa de Malta. Como é possível, então, que ninguém os tenha visto? A resposta não se encontrará na conferência "Tecnologia biométrica para os controles fronteiriços", que será realizada em Varsóvia nos dias 1° e 2 de outubro, onde a Frontex convida a indústria a participar e exibir seus produtos.

A resposta é conhecida perfeitamente pelos eritreus da Líbia: "Não foi um acidente. Foi um homicídio."


NOTA:

(1) Na foto, a sobrevivente Titti Tazrar, de 27 anos. Nesse artigo se encontra sua história. Durou um ano, quatro meses e vinte um dias para chegar na Itália. Titti decide, um dia, que não quer seguir no exército eritreu. Passa por sua casa e empreende a viagem com 10 euros que lhe deram sua mãe e seus irmãos. Chega ao Sudão, onde trabalha como assistente. Informa-se que necessita pagar 900 euros para chegar à Líbia, e da Líbia à Itália. Trabalha durante um ano para economizar. Finalmente embarca. A viagem será terrível: presenciará a morte de seus 73 companheiros. A morte de suas duas amigas, Ester e Luam, grávidas, vai lhe afetar terrivelmente. Vê passar barcos. Um barco de pescadores se aproxima e, ao verem sete cadáveres a bordo, se afastam deixando pão e duas garrafas de água. Finalmente chega o resgate. Ela é internada no hospital. Vive.

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quinta-feira, 27 de agosto de 2009

Honduras e a ocupação continental

No golpe de Estado das Honduras houve dois precedentes: “Mau precedente é a destituição de um governo legítimo, derrubado por um golpe de estado ilegítimo, que, ainda por cima, acaba por ser acusado de violar a constituição, e por causa desse expediente é equiparado a um governo de golpistas. Tão defensor quão violador da Constituição é um e outro, respectivamente, no diálogo imposto depois do golpe. Bom precedente é o de um povo que se mobiliza pelo restabelecimento da constitucionalidade e contra um golpe de Estado e a militarização robustecida que lembra situações próprias de um passado próximo”.

Ana Esther Ceceña*

Tal como Honduras demonstrou claramente os limites da democracia dentro do próprio sistema capitalista, a questão subjacente é que, com o projeto de instalação de novas bases na Colômbia e a imunidade das tropas estadunidenses em território colombiano, tudo isso tornaria esse mesmo país e na totalidade do seu território uma colônia dos Estados Unidos, o que iria pôr em causa a capacidade soberana de autodeterminação dos povos e dos países da região.

O ataque a Sucumbíos [1], em Março de 2008, marcou o início de um novo ciclo na estratégia estadunidense de controle do seu espaço vital: o continente americano.

Esse foi um dos momentos de busca de apoios regionais para esses ataques, sempre sob o pretexto da guerra preventiva contra o terrorismo. Mas, se na Palestina e no Médio Oriente já é habitual seguir as ofensivas do Pentágono, identificadas com os interesses específicos de Israel, na América, nunca havia ocorrido anteriormente, um ataque unilateral de um país a outro país, «em defesa da sua segurança nacional».

Esse ataque configurou as linhas mestras de uma política de Estado, que não se modificou com a mudança de governo (de Bush para Obama), adaptando-se, antes, ao momento vivido então, no plano da política continental que, nessa oportunidade, assistiu a uma elegante contestação do Equador, apoiada pela maioria dos presidentes da região na reunião de Santo Domingo [2].

Prudentemente, abrandou-se esta escalada militar para serenar as tensões, e dar tempo para se proceder à mudança de administração nos Estados Unidos, mas a necessidade em travar o crescimento do ALBA [3], e as diligências para encontrar caminhos seguros para interferir na região, sobretudo contra a Venezuela, Equador e a Bolívia, levou os EUA a, rapidamente, envolverem-se em projetos desestabilizadores ou claramente militaristas.

O golpe de Estado nas Honduras, um dos elos mais frágeis da ALBA, e liderado por um militar hondurenho formado e treinado na Escola das Américas, perpetuado com o apoio da base de Palmerola, orientado pelos estrategistas da embaixada norte-americana e reivindicado pela oligarquia hondurenha – que deve a sua existência à defesa dos interesses norte-americanos que procura, desse modo, para a sua articulação, apoiadores locais – é o primeiro passo para o relançamento dessa mesma escalada.

Mau precedente é a destituição de um governo legítimo, derrubado por um golpe de estado ilegítimo, que, ainda por cima, acaba por ser acusado de violar a constituição, e por causa desse expediente é equiparado a um governo de golpistas. Tão defensor quão violador da Constituição é um e outro, respectivamente, no diálogo imposto depois do golpe.Bom precedente é o de um povo que se mobiliza pelo restabelecimento da constitucionalidade e contra um golpe de Estado e a militarização robustecida que lembra situações próprias de um passado próximo.

Contudo, o golpe nas Honduras apenas anuncia o que se vislumbra para esses governos que ousam desafiar o império e que, por isso mesmo, não cessam de ser perseguidos. Honduras acabou por ser atropelada numa busca para se atingir objetivos de maior importância geoestratégica: Venezuela, Equador e Bolívia.Mas, a confusão criada propositadamente para o efeito em Honduras, desviou as atenções de muitos, voltando-se a desenterrar as encenações e as acusações de cúmplices das FARC – classificadas como grupo terrorista nas listas negras do Pentágono - aos presidentes da Venezuela e do Equador, ao mesmo tempo que se ressuscitou um antigo acordo entre a Colômbia e os EUA que atribui imunidade a tropas estadunidenses em território colombiano e permite a instalação de sete bases militares norte-americanas a somar às seis já reconhecidas pelo Pentágono no seu Base Structure Report, ratificado pelo Congresso.

Honduras constituiu o elemento instigador ou, melhor dizendo, e com toda a gravidade daí decorrente, a cortina de fumaça que deu lugar à reativação do projeto interrompido depois do ataque a Sucumbíos: a criação de uma delegação regional na América, defensora da guerra preventiva, e isso, precisamente ao lado do canal do Panamá e à entrada mesmo do vale da Amazônia mas, e isso é o mais importante em termos estratégicos conjunturais, junto às fronteiras dos países em que decorrem processos políticos incômodos para os grandes poderes mundiais liderados pelos EUA.

Está em curso, um projeto de recolonização e subjugação, à escala continental. Com o consentimento e até algum entusiasmo das oligarquias locais, com a co-participação de grupos de extrema-direita instalados em alguns governos da região, se constrói na América Latina, muito mais do que um novo estado de Israel, em que o perímetro para intervir se deverá medir a partir das distâncias que os aviões de guerra e monitorização hão-de conseguir percorrer num único vôo, sem abastecimento de combustível; ou através dos tempos que demorarem para atingir os alvos conjunturais, que são demasiados distantes a partir das bases instaladas na Colômbia; ou mediante a avaliação da rapidez de capacidade de resposta face a eventualidades ocorridas nas principais cidades vizinhas: Quito, Caracas e La Paz; ou com a segurança econômica infundida pela presença junto da região petroleira do Orenoco, equivalente às jazidas da Arábia Saudita, ao lado do rio Amazonas, principal caudal de água doce do continente, perto das maiores jazidas de biodiversidade do planeta, frente a frente com o Brasil, e com a possibilidade de aplicar a técnica de alternar o cravo com a ferradura, e contando, para tal, com a cooperação do Peru, isto tudo para responder aos três países que na América do Sul ousaram desafiar a hegemonia.

Tal como as Honduras demonstram claramente os limites da democracia dentro do próprio sistema capitalista, a questão subjacente é que, com o projeto de instalação de novas bases na Colômbia e a imunidade das tropas estadunidenses em território colombiano, tudo isso tornaria esse mesmo país e na totalidade do seu território uma colônia dos Estados Unidos, o que iria pôr em causa a capacidade soberana de autodeterminação dos povos e dos países da região.

As ações deste enclave militar na América Latina, dirigir-se-ão aos estados inimigos ou aos estados em bancarrota que, consoante as novas normas promovidas pelos EUA, provem ser historicamente falidos, ou possam vir a sê-lo, instantaneamente, por colapso. Qualquer atrevimento pode tornar um país num estado falido, e por isso mesmo, passível de sofrer uma intervenção. E entre esses atrevimentos, encontram-se as possíveis relações de governantes com grupos qualificados como terroristas. E é assim que se explica a insistência em acusar os presidentes Chávez e Correa de manter estreita colaboração com as FARC.

Uma vez decretado o estado de falência num país, a intervenção poderá efetuar-se a partir da Colômbia, que já se encontra bem equipada para atacar os seus vizinhos.

Quinhentos anos depois, nós, os habitantes da América Latina, temos que continuar a lutar contra os saqueadores, contra a colonização, e as imposições externas de todo o gênero, no entanto, se não pararmos a militarização e o estabelecimento de tropas dos Estados Unidos na Colômbia, as nossas lutas dos últimos quinhentos anos terão sido em vão.

De novo e como nos velhos tempos, tem um profundo significado a palavra de ordem: Yanquies vão para casa!

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Notas do tradutor:

[1] Ataque a Sucumbíos: província equatoriana atacada pelo exército colombiano, em Março de 2008.

[2] Reunião de Santo Domingo: encontro na república Dominicana, a 7 de Março de 2008, ao mais alto nível, promovido numa tentativa de selar a paz na América Latina, depois do ataque a Sucumbíos.

[3] ALBA: organização da Alternativa Bolivariana para as Américas. Trata-se de um organismo criado à revelia de outros daquele continente e, instrumentalizados pelos EUA. A ALBA entre outros combates, luta contra a entrega das empresas estatais estratégicas para o capital transnacional, opõe-se ao implemento da flexibilização das relações laborais, preocupa-se com a negação e supressão de direitos e, finalmente, desencoraja a privatização de serviços públicos da saúde, educação, habitação e segurança social. A sétima cimeira decorreu em Abril de 2009, na Venezuela e contou com a participação de inúmeros países da região.


* Ana Esther Ceceña, economista mexicana, é investigadora no Instituto de Investigações Econômicas da Universidade Nacional Autônoma do México (UNAM) e integra a Campanha pela Desmilitarização das Américas (CADA).

Este texto foi publicado em Colômbia Plural

Tradução e notas de João Hinard de Pádua.

Publicado em O Diário.info

Faixa de Gaza: o massacre continua


Um palestino morreu nesta quinta-feira ao ser atingido por um obus lançado pela marinha israelense na fixa de Gaza, informaram fontes médicas palestinas.

Mohammad Attar, um pescador de 25 anos, foi mortalmente ferido pelos fragmentos do obus "lançado por um barco israelense" no setor de Al-Attatra, no norte da faixa de Gaza, segundo o chefe dos serviços de urgências, Mouawiya Hassanein.

Nenhum comentario pode ser obtido no momento de parte do exército israelense.

quarta-feira, 26 de agosto de 2009

ABAIXO-ASSINADO INTERNACIONAL EM DEFESA DA LIBERDADE DE CESARE BATTISTI


O escritor e perseguido político Cesare Battisti ainda está preso no Brasil, ao arrepio da Lei e da jurisprudência, embora já em janeiro/2009 devesse ter sido libertado em função do reconhecimento de sua condição de refugiado político por parte do governo brasileiro. E a Italia continua movendo céus e terras para impor sua extradição, numa campanha que mobiliza recursos astronômicos e utiliza pressões as mais descabidas para vergar as autoridades brasileiras a seus desígnios.
Pedimos aos cidadãos com espírito de justiça, no Brasil e no mundo, que divulguem este abaixo-assinado para a libertação de Cesare Battisti. E, também, que façam chegar sua tomada de posição aos seguintes endereços:

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LIBERDADE PARA BATTISTI

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Sr. Presidente da República Federativa do Brasil,
Sr. Presidente do Supremo Tribunal,
Sr. Ministro da Justiça,
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.........................................nós, abaixo-assinados, pedimos-lhes solenemente que não extraditem Cesare Battisti, que lhe ofereçam o refúgio político humanitário e que lhe permitam viver no seu país, como ele disse desejar.

A decisão tomada pelo ministro da Justiça em 23/01/2009, de atribuir-lhe o refúgio político humanitário, honra o seu país e o povo brasileiro. Honra todo o Brasil, não somente pelo seu alcance individual, mas, sobretudo, pelo seu alcance universal -- até porque, como sublinhou a ONU, existe um real perigo de que se esvazie a instituição do refúgio.

Apesar desta decisão soberana, a Itália continua fazer pressão sobre o vosso governo para exigir a extradição de Cesare Battisti. Frente a essa pressão reiterada, sem considerar o conjunto do processo agora conhecido, desejamos retomar alguns elementos que devem permitir compreender-se que, além do caso Cesare Battisti (que não é unico), é da defesa das liberdades democráticas que se trata.

Não é o caso de discutir o carácter democrático ou não da Itália. É indispensável recordar que este país foi objeto de numerosas denúncias por parte do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos e de organizações reconhecidas em nível internacional, relativas à tortura, bem como à implicação dos diferentes serviços policiais e judiciais em casos de suspensão e desrespeito das regras do Direito internacional em matéria de direitos humanos.

Desde 1979, os relatórios da Anistia International referem alegações de tortura ou de tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes, tanto nas detenções como em prisão preventiva, além da prestação de cuidados médicos insuficientes aos detidos.

Até hoje, no seu último relatório de 2009, a Anistia Internacional destaca: as autoridades italianas ainda não inscreveram a tortura entre os crimes sancionados pelo Código Penal. Também não instauraram mecanismo eficaz que assegure que a polícia preste conta dos seus atos.

Os anos de chumbo, na Itália, inscrevem-se num contexto internacional em que, do México à França, passando pela Checoslováquia, milhões de pessoas manifestam contra o autoritarismo e procuram construir um mundo ideal de liberdade e de justiça.

A América Latina pagará muito caro esta sede de liberdade. Os sucessivos golpes de estado fomentados pelos Estados Unidos para extirpar os movimentos que prejudicavam os seus interesses seriam apoiados pelos países da Otan, e a França. Estratégia do terror, tortura, desaparecimentos e eliminação sistemática dos oponentes foram então erigidos em método de governo. A Europa não escapou a este processo; e a Itália, sem dúvida, menos ainda que os outros países.

Aí está porque é necessário recordarmos que, precisamente, estas estratégias de tensão e terror, bem como os riscos de golpe de estado fascista, tomaram corpo naquele país, como testemunham os atentados e massacres perpetrados pelo grupo Loja P2, os circulos fascistas e os serviços de informação italianos.

Piazza Fontana (1969 - 17 mortos, 88 feridos), Brescia (1974 - 8 mortos, 94 feridos), Bolonha (1980 - 85 mortos, 200 feridos) são os atentados mais notáveis desse período, mas estão longe de ser os únicos.

No decreto de novembro de 1995, O tribunal supremo italiano revelou a existencia de uma vasta associacão subversiva composta, de uma parte por elementos provenientes de movimentos neo-facistas dissolvidos, como Paolo Signorelli, Massimiliano Fachini, Stefano Delle Chiaie, Adriano Tilgher, Maurizio Giorgi e Marco Ballan; e, por outra parte, Licio Gelli (chefe do grupo Loja P2), Francesco Pazienza, o colaborador do diretor geral do serviço de informação militar SISMI, e dois outros oficiais do serviço a saber, o general Pietro Musumeci e o coronel Giuseppe Belmont.

É nesse contexto que mais de 400 organizacões estruturaram-se para lutar contra o fascismo; e que dezenas de milhares de italianos foram às ruas e atacaram tais milícias. Milhares de opositores do fascismo foram condenados a seculos de prisão.

Sustentar-se hoje que estas condenações não se inscreveram num contexto político e que foram decretadas apenas contra qualquer malfeitor sem fé nem lei, revela simplesmente uma negação da realidade. Ou, mais precisamente, um disfarce da História, que serve para ocultar as razões pelas quais, ainda hoje, o risco fascista persiste na Itália.

A recaída no fascismo ameaça a Europa democrática desde a primeira eleição de Silvio Berlusconi em 1994. Este aliou-se a um partido abertamente xenófobo e federalista, a Liga do Norte; e, na Aliança Nacional , retomou o chefe do MSI Giorgio Almirante (chefe de gabinete de ministro da Cultura popular de Mussolini e membro da guarda nacional da República de Salò). A página mussolineana está longe de ser página virada.

As últimas leis votadas pela Itália são também objeto de preocupações crescentes entre os organismos internacionais de defesa dos direitos humanos, devido ao seu carácter racista e xenófobo, bem como ao descumprimento de suas obrigações internacionais (vide o relatório da Anistia Internacional de 2009 e os comunicados de imprensa de 07.05.09 e 03.07.09, dentre outros).

Numerosas são as acusações de maus tratos, tortura e violação da dignidade humana que continuam a pesar sobre o sistema carcerario italiano. Ainda em julho de 2009 a Itália voltou a ser condenada pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos pelas condições de detenção julgadas degradantes.

Nessas condições, é evidente que a extradição de Cesare Battisti e sua condução às prisões italianas colocariam em efetivo perigo a sua integridade física e psicologica.

Os fatos pelos quais Cesare Battisti foi condenado situam-se claramente num contexto político e a obstinação vingativa da qual é objeto revela-se igualmente politica. É por isso que, seguindo a decisão do Ministro da justiça, rogamos-lhe liberar Cesare Battisti e garantir-lhe o refúgio político humanitário político que lhe foi outorgado em janeiro de 2009.

O seu país faz, doravante, parte de um continente no qual a esperança renasce. São nações que, afirmando a sua independência, libertaram-se das tutelas estrangeiras.

Estamos convencidos que vocês não voltarão ao passado, extraditando Cesare Battisti, o que seria uma reincidência na terrível decisão do governo que entregou Olga Benario, companheira de Luiz Carlos Prestes, à Alemanha nazista.

Estamos certos que reafirmarão a independência do seu país e sua adesão aos ideais de liberdade e de justiça.

Cremos que colocarão Cesare Battisti em liberdade.
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Em: agosto/2009
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Comitê de Solidariedade a Cesare Battisti

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Original em O Rebate

terça-feira, 25 de agosto de 2009

RACISMO!

Após agressão, Carrefour será processado por racismo

Januário Alves de Santana, que foi agredido por seguranças do Carrefour, em Osasco, irá processar a empresa e o Estado por racismo. Januário foi espancado durante 30 minutos por cinco seguranças do supermercado por ser negro e possuir um EcoSport.

No dia 7 de agosto, Januário encontrava-se ao lado de seu carro, cuidando da filha de dois anos que dormia no banco de trás. Pouco depois de soar o alarme de uma moto no estacionamento do supermercado, um homem armado e sem uniforme se aproximou para tentar prendê-lo. Como o proprietário resistiu, mais seguranças apareceram. Sem dar chance de explicação, o conduziram a uma sala onde foi mantido em cárcere privado e submetido a uma sessão de socos. A violência da agressão afetou o seu maxilar. “Eles falaram que eu ia roubar o EcoSport e a moto. Quando disse que o carro era meu, batiam mais”, relatou.

Segundo Januário, que é técnico em eletrônica e trabalha há oito anos como vigia da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Universidade de São Paulo (USP), com a chegada da Polícia Militar, iniciou a tortura psicológica. Em vez de receber socorro, a vítima foi tratada como um criminoso: “Você tem cara de que tem passagem pela polícia. Conta para nós. No mínimo, umas três passagens você tem. A sua cara não nega ‘negão’”, afirmou um policial.

Durante o tempo em que era espancado, sua mulher, um filho de cinco anos, a irmã e um cunhado faziam compras. Segundo o seu advogado, Dojival Alves, Januário era levantado por um segurança pelo pescoço enquanto os outros davam socos e coronhadas. Mesmo coberto de lesões, a vítima não recebeu socorro, tendo sido obrigado a ir de carro até o hospital.

Eduardo de Oliveira, presidente do Congresso Nacional Afro-Brasileiro (CNAB), manifestou “o mais veemente repúdio ao comportamento incontestavelmente racista e preconceituoso dos seguranças da multinacional, cujo crime ignominioso não pode ficar impune”. No sábado, dezenas de manifestantes protestaram no estacionamento do supermercado, denunciando o racismo. A empresa afastou um dos agressores, e ainda não identificou os outro quatro.
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Original em Hora do Povo

A propósito do Afeganistão

Poderia ser o Vietnã de Obama, assegurou o The New York Times

O presidente Obama ainda não tinha tomado posse e já seus seguidores estavam esculpindo sua imagem no Monte Rushmore como se fosse mais um Abraham Lincoln ou outra encarnação de Franklin D. Roosevelt.
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E se seus seguidores erraram no precedente histórico? E se o destino de Obama é tornar-se outro Lyndon B. Johnson?

As analogias históricas são sempre simplistas demais e fatalmente frustradas, já que cada presidente é singular. Mas o modelo de Johnson — um presidente que aspirava a criar uns novos Estados Unidos internamente, enquanto lutava uma guerra perdida no exterior — é que persegue a Casa Branca de Obama, enquanto tenta salvar o Afeganistão em meio a um programa doméstico expansivo.

Assim como o presidente Johnson acreditava que não tinha mais remédio que lutar no Vietnã para conter o comunismo, o presidente Obama declarou o Afeganistão, na semana passada, um baluarte contra o terrorismo internacional. "Esta não é uma guerra que preferimos", disse aos Veteranos de Guerras Estrangeiras em sua convenção em Phoenix. "Esta é uma guerra necessária. Os que atacaram os Estados Unidos em 11 de setembro estão conspirando para fazê-lo novamente. Se não for controlada, o talebã terá um refúgio maior do qual desfrutava quando aquele complô de Al-Qaeda".

Contudo, depois de quase oito anos, o apoio do povo estadunidense à guerra no Afeganistão diminuiu dramaticamente. Na semana passada, o The New York Times e CBS News publicaram uma pesquisa que mostra que o apoio popular agora é abaixo de 50%.

Esta decepção se vê refletida em Washington, onde os liberais do Congresso se queixam com maior ênfase da guerra do Afeganistão e os jornais publicam muitas colunas que questionam a participação dos Estados Unidos. Na capa do exemplar mais recente do The Economist, por exemplo, aparece a manchete "Afeganistão: a crescente ameaça do fracasso".

O tenente-coronel Douglas A. Ollivant, um oficial aposentado do exército, que trabalhou no Iraque para o Conselho de Segurança Nacional dos Estados Unidos, durante a presidência de George W. Bush e depois para o presidente Obama, disse que o Afeganistão pode ser "em várias ordens de magnitude" mais duro. Não tem nada da infraestrutura, da educação e dos recursos naturais do Iraque, assinalou, e também não tem uma liderança política com objetivos tão afins aos da liderança dos Estados Unidos.

"Estamos num lugar onde não temos boas opções e contra isso todos lutamos", disse o coronel Ollivant. "Aguentar parece ser um projeto de dez anos e não tenho certeza de que temos o capital político ou financeiro para fazer isso. Contudo, o custo de uma retirada parece também terrivelmente elevado. Assim que pegamos o lobo pela cauda".

E como Lyndon B. Johnson descobriu, o lobo tem dentes afiados.
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(Publicado no The New York Times. Resumo do CubaDebate)

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

Um tema para arqueólogos

Desde 1919, foram assinados 183 convênios internacionais que regulam as relações de trabalho no mundo. Segundo a Organização Internacional do Trabalho, desses 183 acordos, a França ratificou 115, a Noruega 106, a Alemanha 76 e os EUA...14. O país que lidera o processo de globalização só obedece suas próprias leis. E assim garante suficiente impunidade às suas grandes corporações, que se lançam à caça de mão-de-obra barata e à conquista de territórios que as indústrias sujas possam contaminar ao seu bel prazer.

Eduardo Galeano (*)

A cada semana, mais de noventa milhões de clientes acorrem às lojas Wal-Mart. Aos seus mais de novecentos mil empregados é vedado filiar-se a qualquer sindicato. Quando um deles tem essa idéia, passa a ser um desempregado a mais. A vitoriosa empresa, sem nenhum disfarce, nega um dos direitos humanos proclamados pelas Nações Unidas: a liberdade de associação. O fundador da Wal-Mart, Sam Walton, recebeu em 1992 a Medalha da Liberdade, uma das mais altas condecorações dos Estados Unidos.
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Um de cada quatro adultos norteamericanos e nove de cada dez crianças comem no McDonald´s a comida plástica que os engorda. Os empregados do McDonald´s são tão descartáveis quanto a comida que servem: são moídos pela mesma máquina. Também eles não têm o direito de se sindicalizar.
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Na Malásia, onde os sindicatos de operários existem e atuam, as empresas Intel, Motorola, Texas Intruments e Hewlett Packard conseguiram evitar esse aborrecimento, graças a uma gentileza do governo.
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Também não podiam agremiar-se as 1901 operárias que morreram queimadas na Tailândia, em 1993, no galpão trancado por fora onde fabricavam os bonecos de Sesame Street, Bart Simpson e os Muppets.
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Durante sua disputa eleitoral, Bush e Gore coincidiram na necessidade de continuar impondo ao mundo o modelo norteamericano de relações trabalhistas. “Nosso estilo de trabalho”, como ambos o chamaram, é o que está determinando o ritmo da globalização, que avança com botas de sete léguas e entra nos mais remotos rincões do planeta.
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A tecnologia, que aboliu as distâncias, permite agora que um operário da Nike na Indonésia tenha de trabalhar cem mil anos para ganhar o que ganha, em um ano, um executivo da Nike nos EUA, e que um operário da IBM nas Filipinas fabrique computadores que ele não pode comprar.
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É a continuação da era colonial, numa escala jamais vista. Os pobres do mundo seguem cumprindo sua função tradicional: proporcionam braços baratos e produtos baratos, ainda que agora produzam bonecos, tênis, computadores ou instrumentos de alta tecnologia, além de produzir, como antes, borracha, arroz, café açúcar e outras coisas amaldiçoadas pelo mercado mundial.
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Desde 1919, foram assinados 183 convênios internacionais que regulam as relações de trabalho no mundo. Segundo a Organização Internacional do Trabalho, desses 183 acordos, a França ratificou 115, a Noruega 106, a Alemanha 76 e os EUA...14. O país que lidera o processo de globalização só obedece suas próprias leis. E assim garante suficiente impunidade às suas grandes corporações, que se lançam à caça de mão-de-obra barata e à conquista de territórios que as indústrias sujas possam contaminar ao seu bel prazer. Paradoxalmente, este país que não reconhece outra lei além da lei do trabalho fora da lei, é o mesmo que agora diz: não há outro remédio senão incluir “cláusulas sociais” e de “proteção ambiental” nos acordos de livre comércio. Que seria da realidade sem a publicidade que a mascara?
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Essas cláusulas são meros impostos que o vício paga à virtude, debitados na rubrica Relações Públicas, mas a simples menção dos direitos trabalhistas deixa de cabelo em pé os mais fervorosos advogados do salário da fome, do horário de elástico e da livre despedida. Quando deixou a presidência do México, Ernesto Zedillo passou a integrar a diretoria da Union Pacific Corporation e do consórcio Procter & Gamble, que opera em 140 países. Além disso, encabeça uma comissão das Nações Unidas e divulga seus pensamentos na revista Forbes: em idioma tecnocratês, indigna-se contra “a imposição de estândares laborais homogêneos nos novos acordos comerciais”. Traduzido, isso significa: lancemos de uma vez na lata do lixo a legislação internacional que ainda protege os trabalhadores. O presidente aposentado ganha para pregar a escravidão. Mas o principal diretor-executivo da General Electric se expressa com mais clareza: “Para competir é preciso espremer os limões”. Os fatos são os fatos.
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Diante das denúncias e dos protestos, as empresas lavam as mãos: não fui eu. Na indústria pós-moderna, o trabalho já não está concentrado. Assim é em toda parte e não só na atividade privada. As três quartas partes do carro Toyota são fabricadas fora da Toyota. De cada cinco operários da Volkswagen no Brasil, apenas um é empregado da Vokswagen. Dos 81 operários da Petrobrás mortos em acidentes de trabalho nos últimos três anos, 66 estavam a serviço de empresas terceiristas que não cumprem as normas de segurança. Através de trezentas empresas contratadas, a China produz a metade de todas as bonecas Barbie para as meninas do mundo. Na China há sindicatos, sim, mas obedecem a um estado que, em nome do socialismo, ocupa-se em disciplinar a mão-de-obra: “Nós combatemos a agitação operária e a instabilidade social para assegurar um clima favorável aos investidores”, explicou recentemente Bo Xilai, secretário-geral do Partido Comunista num dos maiores portos do país.
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O poder econômico está mais monopolizado do que nunca, mas os países e as pessoas competem no que podem: vamos ver quem oferece mais em troca de menos, vamos ver quem trabalha o dobro em troca da metade. À beira do caminho vão ficando os restos das conquistas arrancadas por dois séculos de lutas operárias no mundo.
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Os estabelecimentos moageiros do México, América Central e Caribe, que por algo se chamam sweat shops, oficinas de suor, crescem num ritmo muito mais acelerado do que a indústria em seu conjunto. Oito de cada dez novos empregos na Argentina, são precários, sem nenhuma proteção legal. Nove de cada dez empregos em toda a América Latina correspondem ao “setor informal”, eufemismo para dizer que os trabalhadores estão ao deus dará. Acaso a estabilidade e os demais direitos dos trabalhadores, dentro de algum tempo, serão temas para arqueólogos? Não mais do que lembranças de uma espécie extinta?
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A liberdade do dinheiro exige trabalhadores presos no cárcere do medo, que é o cárcere mais cárcere de todos os cárceres. O deus do mercado ameaça e castiga; e bem o sabe qualquer trabalhador, em qualquer lugar. Hoje em dia o medo do desemprego, que os empregadores usam para reduzir seus custos de mão-de-obra e multiplicar a produtividade, é a mais universal fonte de angústia. Quem está a salvo de ser empurrado para as longas filas que procuram trabalho? Quem não teme ser transformado num “obstáculo interno” , isso para usar as palavras do presidente da Coca-Cola, que há um ano e meio explicou a demissão de trabalhadores dizendo “eliminamos os obstáculos internos”.
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E uma última pergunta: diante da globalização do dinheiro, que divide o mundo em domadores e domados, seremos capazes de internacionalizar a luta pela dignidade do trabalho? Haja desafio...
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(Artigo publicado originalmente em 2001 e incluído no livro “O teatro do bem e do mal”, publicado no Brasil pela L&PM)
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Publicado em Carta Maior

domingo, 23 de agosto de 2009

As Eleições Afegãs: Farsa num País ocupado

As eleições afegãs foram uma farsa. Mais de 300.000 soldados e polícias (100.000 estrangeiros) foram mobilizados para garantir aquilo a que chamaram umas «eleições limpas e democráticas». O objetivo era legitimar a ocupação do país através do voto. Mas não foi atingido. Segundo a Comissão Eleitoral, a participação terá sido 40 a 50%. Mas de acordo com as crônicas dos correspondentes de grandes jornais europeus a fraude foi gigantesca. A inscrição das mulheres nos cadernos eleitorais foi feita sem a sua presença, pelos maridos. Cartões de eleitor falsos foram vendidos pelo equivalente a 10 euros no mercado negro. Hamid Karzai, o presidente, recebeu uns 800.000 votos fictícios. O Palácio presidencial foi bombardeado na véspera das eleições e centenas de secções de voto não foram sequer instaladas. Os dois principais candidatos apressaram-se a proclamar vitória por maioria absoluta o que dispensaria uma segunda volta. Mas os resultados oficiais somente serão anunciados em meados de Setembro. Irá a Casa Branca a decidir quem será o vencedor destas eleições fraudulentas?
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Miguel Urbano Rodrigues
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As eleições presidências e locais no Afeganistão foram, como se previa, uma farsa dramática.

Mais de 300.000 soldados e polícias (100.000 da NATO e da Força «Liberdade Duradoura» exclusivamente constituída por tropas norte-americanas) foram mobilizados para garantir o caráter «democrático» do processo. Mas o espetáculo não se desenrolou de acordo com o programa.

Washington tinha manifestado a esperança de que as eleições seriam «limpas e massivas». Foram sujas e a abstenção foi enorme. Na maioria das Províncias multiplicaram-se os ataques armados a lugares estratégicos. Segundo a Comissão Eleitoral Independente (assim se chama), registraram-se uns 135 «incidentes» em 15 Províncias. Balanço provisório: 56 mortos. Alguns colégios eleitorais foram atingidos por mísseis. Nas vésperas o Palácio Presidencial foi bombardeado.

Hamid Karzai- ex funcionário de uma transnacional estadunidense apressou-se a proclamar a sua vitoria por maioria absoluta ,o que dispensaria uma segunda volta em Outubro. Mas o principal adversário, Abdullah Abdullah, também reivindicou a vitória.

A Comissão Eleitoral esclareceu que somente começará a divulgar resultados parciais a partir da próxima semana. Os oficiais, não definitivos, não antes de meados de Setembro.

Estavam aptos para votar, oficialmente, mais de 17 milhões de cidadãos. Acontece que as estatísticas no Afeganistão são fantasistas. Atribuem atualmente ao país 33 milhões de habitantes, mas há 30 anos o governo revolucionário avaliou-a em apenas 16 milhões.

A Comissão Eleitoral informou que funcionaram 95% das 6 500 secções de voto. Ninguém acreditou porque muitos dos 364 Distritos estão sob controle das guerrilhas.

Estranhamente 70% dos eleitores são do sexo feminino. O absurdo tem uma explicação. São os maridos que inscrevem as mulheres – com freqüência três ou quatro – nos cadernos eleitorais. A lei não exige que elas se apresentem no ato de inscrição. Os cartões de eleitor não têm, aliás, fotografia, pelo que o controle é impossível.

Correspondentes de jornais europeus revelaram que no mercado negro foram vendidos centenas de milhares de cartões, por um preço equivalente a seis euros. Um dos candidatos à Presidência, o milionário Ashrai Ghani, ex-ministro das Finanças, afirma que Karzai recebeu uns 800.000 votos fictícios do eleitorado feminino.

Como a esmagadora maioria da população é analfabeta, pintavam um dedo aos iletrados após a votação. A tinta utilizada era, porém, lavável o que permitiu ao mesmo cidadão votar mais de uma vez.

O número de candidatos à Presidência merece registro no Guiness: quatro dezenas!Como, simultaneamente, 3.195 cidadãos disputaram as eleições locais, candidatando-se a conselheiros municipais, a corrupção e a violência espalharam-se pelo país como lava a escorrer de um vulcão.

Os adeptos de Karzai e Abdullah envolveram-se numa guerra interna. Dezenas de candidatos foram assassinados. O diretor da campanha de Abdullah foi também abatido.

O envolvimento da Presidência num feixe de casos de corrupção (ao irmão do chefe do Executivo foi apreendida em casa uma enorme quantidade de heroína) e a apropriação pelos seus colaboradores de centenas de milhões de dólares da «ajuda internacional» levaram Karzai nos últimos meses a uma reversão de alianças. Para receber o apoio de grandes chefes tribais que durante anos havia combatido ou deportado (como o uzbeque Rachid Dostum, um genocida) comprou-lhes a consciência e os votos.

A EUFORIA E O MEDO DE HAMID KARZAI

O Presidente temia o que iria passar-se no dia 20. À cautela proibiu os meios de comunicação social de noticiar atos de violência nas vésperas e no dia das eleições. O acesso dos jornalistas às secções de voto foi também interdito e o governo esclareceu que os correspondentes estrangeiros que violassem a proibição seriam expulsos.

Logo na manhã de sexta-feira, Karzai e os seus ministros principiaram a falar de afluência maciça às urnas. Algumas mídias estrangeiras difundiram a noticia. Era falsa. As longas filas de votantes nos colégios eleitorais inexistiram.

No sábado a Comissão Eleitoral informou que avaliava a abstenção entre 45 a 50 por cento. Por outras palavras, mais de metade dos eleitores inscritos não teria votado apesar das formidáveis pressões oficiais e da atmosfera de intimidação que se respira num país ocupado. Enviados especiais das agências Reuters e Efe e de grandes jornais europeus conservadores entre os quais Le Monde, Le Fígaro e El Pais – sublinharam alias nas suas crônicas que uma gigantesca fraude retirava credibilidade aos resultados a serem divulgados.

Diplomatas ocidentais, segundo Le Monde, avaliaram em 10% a participação dos eleitores em certas regiões do Sul.

Um relatório da UNAMA, a missão de Assistência das Nações Unidas para o Afeganistão, publicado no início de Agosto, manifesta grande preocupação com o futuro do país. Em sua opinião, o clima de violência em que transcorreu a campanha, marcado por ameaças, o roubo dos fundos internacionais, assassínios e uma corrupção avassaladora desmente o otimismo daqueles que insistem em definir como «democráticas» as eleições.

Essa evidência não impediu Barack Obama de as definir como «um êxito» logo que se encerraram as urnas.

Na véspera, discursando no Arizona, o Presidente dos EUA defendeu uma vez mais a guerra no Afeganistão como uma prioridade estratégica, indispensável à segurança do povo norte-americano e salientou que a grande tarefa dos militares do seu pais consiste agora na «conquista dos corações e do espírito dos afegãos».

A situação real no país não confirma a esperança de contornos românticos de Barack Obama.O novo secretário-geral da NATO, o dinamarquês Anders Rasmunssen, manifestou também satisfação pelo clima que envolveu a jornada eleitoral assegurada pelas «forças de segurança».Na opinião dos correspondentes estrangeiros a grande maioria dos afegãos, de todas as etnias, detesta o militares estrangeiros que ocupam o país.

A popularidade de Karzai em Kabul seria muito baixa. O mesmo não acontece com a imagem dos antigos dirigentes da revolução afegã. René Girard, o enviado de Le Fígaro, informa que na capital não se vê um retrato do ex-presidente Muhamad Najibullah. Mas isso não impede – escreve – que ele seja «de longe o político mais popular da história afegã contemporânea».

INCÓGNITA: A OPÇÃO DE WASHINGTON

O objetivo principal das eleições era a legitimação pelo voto da tutela imperial imposta pelos EUA ao povo afegão.

Mas a alta percentagem da abstenção expressou a condenação da guerra e da caricatura de democracia representativa implantada sob a proteção das baionetas americanas.

Não é de estranhar que a própria imprensa dos EUA comece a questionar a estratégia de Obama para a Região.

Cabe recordar que o Presidente enviou para o Afeganistão mais 21.000 soldados e alargou os ataques aéreos às zonas tribais do Paquistão, habitadas por pachtuns, alegando que funcionam como «santuários dos talibãs».

A nomeação do general Stanley McChrystal como comandante-chefe na Região foi alias o prólogo da grande ofensiva na Província do Helmand em que participaram 4.000 marines e tropas de elite britânicas. Entretanto o próprio general – um boina verde com currículo de criminoso de guerra – reconheceu que essa ofensiva, tendente a criar condições de segurança para as eleições, não atingiu os seus objetivos. Foi um fracasso militar e político. As baixas foram muito elevadas. McChrystal abandonou a oratória triunfalista e fala agora de uma «guerra de longa duração».

A popularidade de Obama (pela primeira vez a rondar os 50%) ressente-se e a sua estratégia afegã é cada vez mais contestada.

As grandes cadeias de televisão e os diários de influência nacional, como The New York Times e o Washington Post, estão conscientes de que a eleição presidencial colocou a Casa Branca perante uma situação dilemática.

Nas últimas semanas aumentaram as criticas de altas personalidades da administração a Hamid Karzai. O presidente fantoche e corrupto tornou-se muito incômodo. Mas em Washington teme-se a situação de instabilidade que resultaria da necessidade de um segundo turno se Karzai não obtiver os 50% indispensáveis à reeleição automática.

A resposta à incógnita será conhecida quando a Comissão Eleitoral anunciar o nome do vencedor das eleições e a votação que obteve.

Observadores internacionais acreditam, entretanto, que a decisão sobre o nome do futuro presidente será tomada em Washington.

Houve tantas fraudes nestas fantasmáticas eleições que mais uma, a maior e mais grave de todas, não é improvável.

O POVO AFEGÃO SUJEITO DA HISTÓRIA

Foi em l988, há 21 anos, que estive pela ultima vez no Afeganistão.A Revolução, abandonada por Gorbatchov, lutava então para sobreviver.

As últimas tropas soviéticas retiravam-se do país e a farinha e o petróleo começavam a escassear. Mas as Forças Armadas afegãs batiam-se com bravura contra os bandos de mujahedines das Sete Organizações Sunitas de Peshawar, armadas e financiadas pelos EUA. Reagan recebia na Casa Branca como «combatentes da liberdade» os seus chefes, quase todos milionários ligados à produção e tráfico da droga e a negócios mafiosos.

Osama Ben Laden, ao tempo um desconhecido, era aliado dessa gente; a sua família mantinha relações de amizade com George Bush pai, o vice-presidente dos EUA. Os talibãs ainda não haviam sido criados pela CIA e pelos serviços secretos do Paquistão.

Nesse ano 88 as moças ainda eram mais numerosas do que os homens na Universidade de Kabul. Nos quartéis da Cordilheira, quando atravessei o Hindu Kush, falei com mulheres que lutavam pela Revolução, de fuzil a tiracolo e rosto descoberto. Havia no Governo ministras.

Guardo dessa visita e de outras anteriores recordações inapagáveis.A Revolução tinha expropriado os senhores feudais, entregado a terra e a água aos camponeses (num país onde nada verde brota da terra sem a água das neves vindas da alta montanha), havia fundado universidades, instalado fábricas, construído milhares de escolas, dignificado as mulheres.Nem uma só capital das 34 Províncias tinha sido conquistada pelos contra-revolucionários.

Não posso esquecer as vigílias passadas em Kabul falando da Revolução e dos desafios dela inseparáveis com dirigentes do Partido Democrático Popular,a organização marxista que tomara o Poder uma década antes. Recordo com saudade alguns desses companheiros, revolucionários exemplares que me ajudaram a compreender a história profunda dos povos que viviam há séculos nas montanhas, vales e desertos daquele país.

Transcorridas duas décadas, tudo isso acabou.

Em Portugal, lendo textos que jornalistas mercenários ou ignorantes escrevem sobre a eleição farsa não é sem dor que imagino a terra afegã, invadida ocupada e governada pelos EUA.

Nasceu nas minhas passagens por ali um amor que quase se tornou paixão pela história da amalgama de povos muito diferentes que somente no século XVIII passaram a ser designados por afegãos.

Escrevi sobre a sua história centenas de páginas em livros e jornais.

Ontem, ao ler o que sobre as eleições disseram o presidente Obama e o general McChrystal subiu em mim uma pergunta:

Terão eles a noção, mesmo superficial, de que o Afeganistão é hoje talvez o museu arqueológico natural mais rico da humanidade, porque ali sob a terra, inexploradas, se encontram vestígios únicos de grandes civilizações desaparecidas.

Pensei em cidades Aqueménidas da Bactria, ruínas das polis gregas fundadas pelos veteranos de Alexandre, em muralhas dos persas sassânidas, nos Budas gigantes de Bamyan levantados pelos kuchanos vindos do Oriente, em tesouros da estatuária greco-bactriana, nos palácios soterrados dos gahznividas turcos, em mesquitas deslumbrantes dos safévidas, no príncipe timurida Babur, fundador do Império do Grão Mogol, que em Kabul escreveu uma obra prima da literatura mundial.

E perguntei-me se Obama e o general McChrystal saberão que ao longo de vinte e cinco séculos incontáveis gerações de povos de origem iraniana dos quais descendem os atuais pashtuns e tajiques se bateram pelo direito a serem livres nas montanhas e vales do atual Afeganistão contra todos os invasores, desde os persas de Dario, aos americanos de Obama, passando pelos hunos heftalitas, os árabes, os mongóis de Gengis Khan, os turcos chagatai de Tamerlão, os ingleses , os russos do império czarista.

Dói-me escutar o Presidente dos EUA, um homem instruído e talvez honesto, a debitar disparates sobre a necessidade de intensificar a guerra no Afeganistão para defender a liberdade e a democracia.

Dói-me, repito, imaginar a barbárie ocidental que se abateu sobre a terra e os povos do Afeganistão que aprendi a amar.
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Original em O Diario.info

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