*Publicado originalmente em março de 2000.
Sérgio Augusto Silveira
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Este centenário vem sendo comemorado desde o ano passado, quando mereceu uma placa na calçada do monumento Tortura Nunca Mais, no Recife, por iniciativa da Associação Pernambucana de Anistiados Políticos, partidos de esquerda e ex-colegas do PCB, como o ex-vereador Roberto Arrais.
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O mito em torno de sua figura, capaz de mobilizar entidades, inspirar escritores e até disputa pela ‘paternidade’ das comemorações do seu centenário, deve-se ao seu exemplo de firmeza no cumprimento das missões que recebia do PCB, ao enfrentar 20 anos de prisão, as torturas da polícia e do Exército e a discriminação no partido. Gregório organizou e pôs em funcionamento pelo menos uma centena de sindicatos rurais de orientação marxista em quase todos os Estados. Seu exemplo é reconhecido até pelos antigos inimigos ideológicos.
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Quem o conheceu de perto no corpo a corpo da militância, vê mais uma razão para o carisma: seu discurso coloquial de velho camponês e de imediata comunicação com o povo. Esta foi sua grande arma, temida pelos governos que se sucederam até o regime dos generais, derrubado em 1985.
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Integrante do Comitê Central do PCB, ao lado do lendário chefe comunista no País, Luiz Carlos Prestes, Gregório sempre disse que “um revolucionário deve ser, antes de tudo, um audacioso”, e deu exemplo disto quando, no Recife, deflagrou o movimento de insurreição planejado pela Aliança Nacional Libertadora para assumir o poder, tomando de assalto o CPOR, do qual era sargento-instrutor. o movimento fracassou, ele ficou preso 10 anos até o final da ditadura Vargas, em 1945, mas o sargento criou fama, principalmente em suas ações para organizar e trazer para o partido os trabalhadores do campo. Com este discurso, Gregório sai, em 1946, candidato a deputado federal constituinte pelo PCB legalizado. É eleito com a maior votação na Região Metropolitana. Os trabalhadores, assim como parte da classe política, têm, até hoje, um juízo dúbio acerca deste líder, ora evitando falar em seu nome devido ao estigma de comunista, ora vendo nele uma espécie de Robin Hood.
Gregório sensibilizou de fato o Recife e o País para o seu nome no momento em que foi vítima de tortura em público, logo após o golpe de 1964, quando, aos 64 anos, foi preso e arrastado por um destacamento militar, acorrentado e espancado nas ruas do bairro de Casa Forte. A cena chocou a cidade. Mas o calvário de Gregório aconteceria também em suas fileiras, já que o Comitê Central do PCB o hospedou, mas nunca reconheceu sua capacidade de decidir e projetar ações políticas, vendo nele um velho camponês experiente, disciplinado, mas simplório, pronto apenas para cumprir tarefas.
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Nascido no município de Panelas, no Agreste pernambucano, paupérrimo, menino de rua que teve mais tarde só a instrução recebida no Exército e a doutrinação partidária, Gregório não era um intelectual como Prestes. Esta simplicidade o fez ser o preterido até no uso do microfone nos comícios, esquecido por quem se dizia seu aliado, a ponto de ser forçado a assumir uma candidatura errada nas eleições de 1982. Filiado ao PMDB, após acusar o PCB de desvio direitista e sair da legenda, concorreu a deputado federal, obtendo apenas 12.156 votos sendo uma vítima do grande confronto que começava entre Jarbas Vasconcelos e Miguel Arraes. Ambos se desafiavam para ver quem seria mais votado, o nisso concentraram mais de 350 mil votos.
Alto, rosto avermelhado, olhos verdes e fala compassada, Gregório tinha uma forte compleição física, que o ajudou a resistir aos maus tratos. Casado com uma mulher também de origem camponesa, dona Maria, Gregório teve um casal de filhos que não herdaram seu ímpeto político, e ainda tem parentes em sua cidade natal, a exemplo de seu sobrinho João Alves dos Santos, de 80 anos, agricultor. E de sua sobrinha Aurelino Azevedo, que faz questão de orientar seus alunos, no colégio estadual Gregório Bezerra, em Panelas, sobre quem foi o “Homem de ferro e flor”, na expressão do poeta maranhense Ferreira Gullar.
De ferro mas frustrado em certos momentos, como confessou ao jornalista Geneton Morais Neto, em 1983. “Em 1964, a frustração foi tamanha, pois a massa camponesa estava pronta para agir e repelir o golpe militar terrorista. Mas não tínhamos armas. Ainda tentei buscar armas no Palácio das Princesas. Desgraçadamente, quando cheguei Arraes já estava preso. Voltei de mãos vazias ao campo, para desfazer todo um trabalho de conscientização da massa camponesa para o confronto. Meu problema não foi o sofrimento, mas a frustração”. E mais adiante: “Não me arrependo. Tenho plena consciência de que meus atos revolucionários foram justos e oportunos. O que posso ter feito, e aí faço autocrítica, é que sempre fui tarefeiro, não tinha boa formação teórica”.
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Advogada lembra trajetória de lutas do líder comunista
A estudante concluinte de Direito e professora, Mércia Albuquerque, passava pela praça de Casa Forte, no dia dois de abril, logo após o golpe militar de 1964, justo no momento em que um homem idoso estava sendo arrastado na rua e espancado por um coronel e vários sargentos, sob o olhar horrorizado dos que passavam. “Naquele momento eu decidi que iria defender aquele homem que estava sendo torturado em público. E foi o que fiz”, conta Mércia, que se tornou advogada de presos políticos e, em especial, de Gregório Bezerra, com quem aprendeu a dimensão dos problemas políticos e sociais brasileiros. Hoje titular da Ouvidoria da Secretaria de Justiça do Estado, ela sofreu maus tratos e foi jogada no xadrez, mesmo gestante, várias vezes, por defender os inimigos do novo regime.
“Quando eu vi aquela cena, lá em Casa Forte, com o coronel Darcy Villoc Viana (o oficial que comandou a prisão de Gregório) gritando ensandecido e ameaçando o ancião, enquanto soldados muito jovens arrastavam aquele homem cambaleando, eu senti que deveria deixar minha profissão de professora de menores abandonados e passar a fazer algo por aquele homem torturado”, lembra a advogada.
Ela localizou Gregório no Parque de Motomecanização, um quartel em Casa Forte. “Ele estava numa cela, com os pés queimados por soda cáustica e a cabeça quebrada. O coronel Villoc disse que eu era uma atrevida. E falou: “Com este ferro eu espanquei seu cliente. O que a senhora acha?”. Eu respondi: “O senhor tem a força, mas...”. aí ele falou: “Mas o quê?”. E eu disse: “Mas mesmo! Posso ir?”. E ele falou: “Dane-se!”. Para ela, naquele momento o País vivia “uma síndrome de sangue”.
Passados 36 anos daquelas cenas, Mércia ainda lembra com emoção, assistindo à movimentação das comemorações dos 100 anos de seu amigo e ex-cliente. “Todos temiam aproximar-se de mim porque eu defendia os presos políticos”, revela, fazendo questão de mencionar o então escrivão da Vara de Homicídios, Décio Magalhães que, em 1967, aceitou, com riscos, levar para casa as razões de defesa de Gregório, rascunhadas por ela, para datilografar. Ainda sem experiência profissional, Mércia pedia ajuda dos advogados Rui Antunes e Cláudio César Andrade. Eles iam para uma granja, de madrugada para não serem vistos pela férrea vigilância policial, onde preparavam as petições. Naquele momento, Gregório estava doente da próstata e tinha sido removido para o hospital onde hoje é o Ipsep. Conta que havia policiais com metralhadora apontando para ela até dentro do quarto do paciente. “Eles queriam ficar até dentro da sala de cirurgia, mas o coronel-médico César Montezuma os expulsou. Eu rendo homenagens ao falecido coronel”.
Sabe-se que, antes mesmo de ser preso, Gregório esteve escondido durante um dia numa usina, enquanto aconteciam centenas de prisões no Recife e no campo. Passadas três décadas daquela noite, a advogada, que sabe detalhes contados por seu cliente, evita revelar quem foi o usineiro que escondeu o líder comunista. Indagada a respeito, ela limita-se a dizer: “Este usineiro foi um político muito importante no Estado, é vivo e às vezes se fala nele”.
Segundo Mércia Albuquerque, a vida de Gregório esteve por um foi também antes de ser entregue ao Exército. Conta que o capitão PM Álvaro Rêgo Barros prendeu Gregório na Usina Pedrosa, em Ribeirão, mas, no caminho, o usineiro José Lopes Siqueira, acompanhado de pistoleiros, exigiu que o oficial lhe entregasse o pistoleiro. Era para trucidá-lo no canavial. O capitão não aceitou. Quase houve tiroteio, mas Rêgo Barros venceu a parada e, como diz Mércia, “ele não sujou as mãos com o sangue da história”.
A advogada diz que nunca comungou da mesma ideologia de seu cliente, mas reconhece que “tratava-se de um líder autêntico, que assumiu corajosamente suas posições, ainda que isso tenha sido causa de muitas privações e sofrimentos”. Revela que ele sempre foi o remediador nos confrontos entre os presos. Respeitava a todos, independente de facção. E mais, revela Mércia: “As mulheres se apaixonavam por ele. Médicas, advogadas lhe mandavam cartas. Eu recebia e as rasgava. Achava que a mulher dele, Maria da Silva Bezerra (dona Maroca) não podia ser maculada. Um dia Gregório descobriu que eu rasgava as cartas. Continuei rasgando. A esposa dele, uma camponesa maternal, sempre deu todo apoio a ele, criou os filhos Jandira e Jurandir com dignidade. Eu contei a ela sobre as cartas. Hoje eu me arrependo de as ter rasgado”.
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Mércia conta que, em 1969 na Casa de Detenção, disse a Gregório que ele se preparasse para sair, pois era um dos presos que iam ser trocados pelo embaixador dos Estados Unidos, Burke Elbrick, sequestrado pela guerrilha urbana. Gregório, que já estava com 69 anos, não aceitou ser solto, dizendo que a decisão era do partido. A advogada disse que ele não poderia prejudicar outros presos que estavam na lista. Ele, então, seguiu para o exílio.
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