Mais assustador que o caso de abuso sexual de um padrasto a uma garota de 9 anos no nordeste brasileiro é a posição que toma a igreja católica ao transferir à vítima a culpa pelo “pecado” de cometer o crime de aborto
Sílvia Ferabolli, Cláudio César Dutra de Souza
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Nesses últimos dias, a mídia tem registrado exaustivamente o caso da menina de nove anos que foi abusada sexualmente pelo padrasto e ficou grávida de gêmeos. Uma menina de 1,36m e parcos 33 kg não poderia resistir a um parto no qual haveria riscos até mesmo para uma mulher adulta, conforme afirmaram os médicos responsáveis.
De acordo com a lei brasileira, o aborto visava preservar a saúde física e psíquica dessa menina que mal sabia que os seus infortúnios haviam recém começado, graças à polêmica atitude do arcebispo de Olinda e Recife, D. José Cardoso Sobrinho, que excomungou do seio da igreja católica todos aqueles que haviam, de alguma forma, decidido pela interrupção dessa absurda gravidez. Ou seja, a mãe, a equipe médica e inclusive a própria vítima.
Nenhuma palavra foi proferida em relação ao homem que praticou tão torpe violência. Ele permanece acolhido como membro da igreja católica e, após uma breve confissão e algumas “Ave Marias”, ele estará com o coração novamente purificado e incluído no rebanho de Cristo, recebendo a comunhão que talvez lhe seja dada pelo próprio D. José Cardoso Sobrinho, o qual afirmou que o padastro “cometeu um crime enorme, mas não está incluído na excomunhão (...) Agora, mais grave do que isso, sabe o que é? O aborto!", completou o Arcebispo. Esse mesmo Arcebispo, que hoje ocupa o posto que já pertenceu ao progressista Dom Helder Câmara, afirma categoricamente que a menina proveniente de Alagoinha, no agreste de Pernambuco, abusada sexualmente pelo padrasto desde a idade de seis anos, essa menina miserável, sofrida e aviltada em sua infância deveria morrer, ou então tornar-se mãe de gêmeos que não desejou e que não teria condições de criar. Dom José condenou-a a morte física e igualmente a uma espécie de morte simbólica todos os que tentaram minimizar os danos sofridos pela menina através da interrupção de sua gravidez.
Para alguns, a excomunhão pode não ter grande significado, no entanto, ela pode vir a ser dolorosa em comunidades pequenas e carentes nas quais o pertencimento a um agrupamento religioso ocupa um importante papel agregador, consolador e muitas vezes pragmático. A igreja, não raro, provém ajuda material, na forma de caridade e de mutirões organizados em favor daqueles que se encontram em situação (ainda mais) precária e privados da mão do estado. Ser expulso de uma comunidade organizada pode ser uma forma dolorosa de exclusão social.
Coincidência ou não, observamos um curioso cruzamento de fatos relacionados ao tema da excomunhão no que se refere justamente à anulação desta, recentemente anunciada pelo papa Bento XVI, em relação aos quatro bispos ordenados pelo falecido ultraconservador Cardeal francês Marcel Lefebvre, os quais foram excomungados por João Paulo II, em 1988, de acordo com o mesmo código canônico de que se vale o Arcebispo de Recife e Olinda no caso presente. Um dos bispos excomungados, o britânico Richard Williamson, havia declarado a uma emissora de televisão sueca que as câmaras de gás dos campos de concentração nazista jamais teriam existido. Os seguidores de Levebvre se opõem às mudanças ocorridas no Concílio Vaticano II, principalmente no que se refere ao ecumenismo e a adaptação do rito religioso à língua e cultura de cada povo. É um sintoma assaz preocupante quando uma instituição como a igreja católica fecha os olhos para a barbárie da pedofilia e do estupro ao mesmo tempo em que perdoa negacionistas e mantém abusadores sexuais de toda a sorte junto a ela. Igualmente, vale recordar que nenhum clérigo católico acusado de pedofilia tenha sido excomungado até o presente momento, o que nos leva a pensar que a violência sexual contra crianças não é um pecado assim tão grave aos olhos divinos. É tranqüilizador saber que para a lei dos homens, esse não é o caso.
Esse debate nos faz pensar sobre a misoginia católica, que sempre optou pela vida do feto em detrimento da vida da mulher que o carrega - e não foram poucas vezes que a vida do filho se sobrepujou à vida da mãe. As mulheres poderiam morrer no parto, porém os seus filhos deveriam ser salvos. Essa lei imperou entre as parteiras e entre os homens quando eram postos frente a esse dilema. No estupro sistemático com fins de limpeza étnica perpetrados durante a guerra na Bósnia, as mulheres grávidas de seus algozes foram conclamadas pelo falecido papa João Paulo II a não fazerem aborto. Nenhuma palavra sobre o sofrimento das próprias, de seus companheiros, parentes e filhos que a tudo presenciaram. Essa é um triste e comum prática de guerra que visa o enfraquecimento da resistência do inimigo e que muitas vezes acarreta uma gravidez indesejada que as vítimas deverão manter até o fim – e depois deverão cuidar e amar os filhos gerados dessa forma abjeta, assim prega o pensamento medieval do Vaticano, cujo sentido e valor de uma vida feminina só se justifica no advento da maternidade, ou ainda, na clausura de um convento. O “Malleus Malleficarum”, manual de caça às bruxas dos inquisidores medievais, continua sendo um exemplo da apreciação do gênero feminino ainda nos dias de hoje por parte da Igreja Católica.
A longa discussão sobre o aborto, ou sobre quando começa a vida propriamente, é de difícil consenso. Cada um tem o seu livre arbítrio para fazer o que bem entender de sua vida e essa é, inclusive, a proposta de Deus. Se uma mulher adulta decide ter um filho de seu estuprador pelas suas convicções religiosas, ninguém pode lhe obrigar a fazer um aborto. Mas esse caso adquire proporções diferentes no momento em que lidamos com variáveis que colocam em risco a vida de uma criança, já suficientemente aviltada pela miséria e pela violência e que recebe, ao invés de um acolhimento carinhoso por parte dos homens de Deus, uma sentença de morte através de sofismas absolutamente desprovidos de sentido tais como “um erro não justifica o outro”. A realidade é que haverá necessariamente uma morte ou um risco real de que isso aconteça e, para o piedoso Arcebispo, os frutos do estupro são mais sagrados do que a vida de quem sofreu a brutalidade – de alguém que já existe, pensa, sofre e tem sentimentos, mas que no tribunal da consciência de D. Cardoso vale menos do que o vir-a-ser de um processo inicial de gravidez.
É lamentável que a igreja católica esteja se tornando uma paródia grotesca de si mesma e que ainda considere possuir o monopólio da fé, tanto quanto acredite ser legítima a sua intervenção em assuntos pertinentes ao estado. A atuação do Arcebispo deveria ser enquadrada na forma da lei e este deveria responder por desobediência civil e por ferir o Estatuto da Criança e do Adolescente – se ele se considera apto a interferir em questões de Estado, é justo que o inverso seja verdadeiro. Por sorte temos um governo que não se curva a esse tipo de chantagem. Na década de 1980, o então Presidente José Sarney, por pressões do clero proibiu o filme de Jean Luc Godard “Je Vous Salue Marie” no Brasil, em uma época em que a censura era ferida aberta na nossa história. Hoje, o Presidente Lula e o ministro José Gomes Temporão respondem à altura esse tipo de provocação obscurantista recordando que o estado laico está acima das querelas religiosas. É tão fácil se chocar com supostas teocracias do Oriente Médio que esquecemos que o irracionalismo religioso, como pensamento e prática, pode estar bem perto de nós, como exemplifica tão bem esse caso. Especificamente no que concerne à separação entre estado e igreja, o Brasil vive a plenitude das luzes renascentistas na América Latina. O estado mostra a sua autoridade através da exigência do respeito à constituição, o que certamente contraria a vontade de coronéis eclesiásticos e populistas de todos os matizes.
A descriminalização do aborto será uma realidade muito em breve, apesar dos lobbys contrários. Fazer um aborto não é uma decisão fácil para ninguém e seria de se espantar se assim o fosse. Porém, por vezes é necessário e o caso da menina pernambucana é o mais paradigmático dos últimos tempos nesse sentido. Descriminalizar o aborto não significa aplaudi-lo e muito menos considerá-lo benéfico em qualquer sentido. É uma agressão ao corpo da mulher e envolve uma série de questões inconscientes extremamente difíceis; só quem já passou pela experiência pode supor. Descriminalizar o aborto não significa torná-lo obrigatório, portanto isso não interferirá nas crenças e valores pessoais daqueles que não o admitem. Contudo, se torna necessária a compreensão de que existem outras formas de pensamentos, inclusive religiosos, e que em outras crenças tais como o judaísmo, o budismo, o hinduísmo, o protestantismo e o islamismo admitem formas de interrupção da gravidez mais ou menos flexíveis, em comum entendimento de que sempre que a vida da mãe corre perigo o aborto deve ser feito. Por que apenas a igreja católica trata as suas fiéis com tal desprezo a ponto de serem postas em um plano tão secundário que nem o estupro, o incesto, a barbárie de guerra, enfim, absolutamente nada pode lhes outorgar a piedade divina caso não possam ou não queiram levar adiante a sua gestação?
Nesse ano, comemoramos o centenário de D. Helder Câmara, antecessor de D. José Cardoso Sobrinho e que, ao contrário desse, foi um exemplo de humanidade e compreensão para com os miseráveis. Dom Helder, antigo Arcebispo de Olinda e Recife, teve um papel de destaque durante a Ditadura Militar e não raro correu perigo de vida na defesa dos perseguidos e injuriados do regime, colocando a sua autoridade eclesiástica a serviço, e não contra, os necessitados. Seria impossível imaginar D. Helder se prestando a um papel tão ridículo como o de seu sucessor. Ele certamente estaria refletindo e denunciando as condições desumanas que geraram o fato em si e que se tornam cada vez mais tristemente comuns em um Nordeste vendido aos estrangeiros como um paraíso do turismo sexual, onde pais prostituem suas filhas por poucas migalhas que garantam a sua sobrevivência e onde a impunidade é um fato, como foi brilhantemente mostrado por Cláudio Assis no filme “Baixio das Bestas”. O Nordeste que tanto preocupava D. Helder se mostra quase sempre mais vulnerável aos “Coronéis”, que se julgam sempre acima das leis e se acostumaram a fazer interpretações pessoais de justiça sem que uma instância superior lhes julgasse. Não afirmamos de modo algum que tais comportamentos sejam exclusivos da região. Eles se distribuem de forma equânime por todo o território nacional. Mas, pela particularidade do evento, torna-se impossível não recordar da luta e das palavras de D. Helder, quando interpelado maldosamente sobre a questão do “amor livre” em um programa de televisão na década de 1960, respondeu: “Para que falar em amor livre quando o Nordeste passa fome?”. No entanto, isso vem de um tempo em que lideranças religiosas na América Latina se preocupavam menos com a vida privada de seus fiéis e mais com a questão da justiça social e da justa distribuição das riquezas. Um tempo que já passou, infelizmente.
“Queira Deus” (!) que os nossos clérigos se ocupem igualmente de outras vidas que diariamente são perdidas mundo afora por arbitrariedades nas quais muitas vezes são coniventes. Excomungue-se àqueles que massacram civis em guerras absurdas, que mantém prisioneiros deprimidos e suicidas em Guantánamo, que abusam da confiança de crianças e adolescentes para destruir-lhes a vida, que recebem genocidas em audiência e que continuam queimando bruxas em pleno século 21. Se um erro não justifica o outro, cabe à igreja a humildade de reconhecer que o erro maior está em suas posições misóginas e desprovidas de compaixão pelo outro, fato que a afasta perigosamente tanto da mensagem de Cristo quanto de seus fiéis. Cabe lembrar que o mesmo Cristo recusou-se a aceitar o apedrejamento da mulher adúltera na famosa passagem do Evangelho, apelando à compaixão e ao bom senso daqueles que se guiavam tão somente pelo irracionalismo religioso daqueles tempos. O incitar à omissão de medidas de saúde necessárias à proteção de mulheres e meninas, sob a bandeira da vontade divina, encontra resposta à altura no brado feminista: “tirem seus rosários de nossos ovários!!!”
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